quarta-feira, 27 de agosto de 2025

Estudo comprova: dieta com ultraprocessados “menos piores” continua ruim para a saúde - Por Flávia Schiochet

 

O argumento de que os ultraprocessados podem fazer parte de uma dieta saudável foi posto à prova por um pesquisador inglês. 

O cientista clínico Samuel Dicken comparou os resultados de uma dieta minimamente processada, em que todos os pratos eram feitos do zero, com uma dieta ultraprocessada, composta por produtos que apresentavam as cores verde e âmbar no sistema de rotulagem nutricional do Reino Unido. 

“Em ambas as dietas, houve melhorias. Mas quando a dieta era minimamente processada, vimos reduções significativamente maiores no peso, na massa de gordura e também melhorias muito maiores no controle da compulsão alimentar. Isso também pode ajudar na manutenção do peso a longo prazo”, resume Dicken, em entrevista para o Joio. 

O Reino Unido sinaliza as informações nutricionais pelas cores do semáforo: verde, âmbar e vermelho. Na embalagem, o sistema de rotulagem aparece desta forma: uma cor para cada tipo de nutriente. 

Os ultraprocessados escolhidos para o estudo foram aqueles que costumam ser promovidos como opções saudáveis porque passaram por reformulação para diminuir as quantidades de sal, açúcar e gorduras saturadas. 

Recentemente, parte da imprensa nacional e internacional tem repetido a retórica da indústria, que tenta enfraquecer o conceito e defende que ultraprocessados podem ser saudáveis. Ainda que ambas as dietas tenham promovido perda de peso, o estudo mostra que o resultado da dieta ultraprocessada não chegou perto do benefício que a minimamente processada propiciou. 

O artigo foi publicado na Nature Medicine. A pesquisa acompanhou 55 participantes com sobrepeso ou obesidade no Reino Unido por seis meses. Eles foram divididos em dois grupos. Um fez uma dieta com alimentos minimamente processados por dois meses. Após um mês de intervalo, em que voltaram a se alimentar da forma como estavam acostumados, eles aderiram a uma dieta ultraprocessada. O outro grupo fez o contrário.  

Toda a alimentação foi providenciada pelos pesquisadores para que os participantes seguissem suas rotinas normalmente. Eles preenchiam um diário com as informações de quanto comiam e, periodicamente, passavam por uma bateria de exames para acompanhar as mudanças de peso e composição corporal. 

Os participantes não sabiam quais eram os objetivos do estudo. Após os dois meses se alimentando com um cardápio inteiramente composto por ingredientes in natura, os participantes perderam, na média, 1,84 kg, o dobro do peso perdido durante a dieta com ultraprocessados (880 gramas).  

Além de maior perda de peso, a dieta minimamente processada resultou na diminuição de gordura corporal, de gordura visceral e dos níveis de triglicerídeos, e os participantes mantiveram sua massa magra. 

A percepção de saciedade também foi maior nesse período e os desejos por produtos específicos, como doces, diminuíram. Já nos dois meses em que os participantes aderiram à dieta ultraprocessada, chamou a atenção dos pesquisadores que o nível de colesterol ruim diminuiu, mas o mesmo não ocorreu com a gordura corporal e visceral. 

A perda de peso na dieta com ultraprocessados pode ser explicada pela qualidade da alimentação padrão dos participantes, que era pior que a dieta oferecida no estudo. A maioria consumia menos que o mínimo recomendado diariamente para frutas, verduras e fibras, e os ultraprocessados representavam mais de dois terços das calorias ingeridas em sua rotina – maior que a média britânica, de 60%. 

O resultado surpreendeu até mesmo o autor, que não esperava mudanças na composição corporal dos participantes após a dieta ultraprocessada. “Achávamos que simplesmente não haveria mudanças, porque os participantes já estavam consumindo uma dieta rica em ultraprocessados e nutricionalmente pobre”, disse Dicken. 

A estimativa é que, se a dieta minimamente processada fosse seguida pelos participantes por um ano, os participantes perderiam até 13% de peso. Em comparação, a dieta com ultraprocessados “menos piores” levaria a uma perda de até 5%.  

A hipótese do estudo é que a densidade energética também tem um papel importante nos ultraprocessados “menos piores”, porque esses produtos tendem a ser comidos mais rapidamente, exigem menos mastigação e aumentam o consumo calórico total antes que a pessoa fique satisfeita, enquanto alimentos minimamente processados geram maior saciedade e favorecem o controle de peso no longo prazo.  Essa tese também vem sendo testada por Kevin Hall, ex-integrante dos Institutos Nacionais de Saúde (NIH, na sigla em inglês) dos Estados Unidos. 

Hall foi o pesquisador principal do primeiro ensaio clínico sobre ultraprocessados, cujos resultados foram publicados em 2019 e levaram a uma mudança de aceitação na teoria sobre os males associados a esses produtos. 

Ao ministrar uma dieta totalmente controlada durante um mês, ele chegou à conclusão de que uma alimentação à base de ultraprocessados levava a aumento de peso e a uma piora dos indicadores de saúde, mesmo diante de padrões equivalentes de fibras, calorias, sal, açúcar e gordura.

A forma como ambos os cardápios foram montados é uma característica importante do estudo. As dietas seguiram as diretrizes do guia alimentar do Reino Unido, o “The Eat Well Guide” (“O Guia da Alimentação Saudável”, em tradução livre), de 2016. 

O documento recomenda um consumo diário de carboidratos, proteínas, gorduras e fibras, sem considerar o nível de processamento dos alimentos. “Tecnicamente, é possível atender às orientações alimentares atuais no Reino Unido com uma dieta de ultraprocessados. Essa foi uma maneira muito inteligente de contornarmos as questões éticas ao fornecer esse tipo de alimentação”, diz Dicken. 

Por causa das diretrizes do guia alimentar do Reino Unido, o cardápio dos ultraprocessados incluía também frutas e legumes in natura. E a seleção de produtos prontos levou em conta os avisos nas embalagens: foram escolhidos os que apresentavam menores teores de sódio, açúcar e gordura, cujo pacote exibia alegações de saudabilidade, como “rico em fibras” e “baixo em sal”. 

De certa forma, o estudo testou o impacto de uma alimentação com ultraprocessados “menos piores”, valendo-se de produtos encontrados facilmente nos supermercados do Reino Unido. 

Os cardápios eram equivalentes na composição. Se havia um espaguete à bolonhesa servido no almoço para a dieta minimamente processada, por exemplo, o grupo da dieta ultraprocessada recebia uma lasanha à bolonhesa congelada. Todas as refeições de um dia somavam quatro mil calorias, e os participantes podiam comer à vontade.

O Brasil foi o primeiro país a incluir em seu guia alimentar, em 2014, a classificação de alimentos por tipo de processamento, dividindo-os entre in natura e minimamente processados, ingredientes culinários, processados e ultraprocessados. 

Os grupos são definidos pela Classificação NOVA, proposta pelo Nupens, da USP, em 2009.  As evidências científicas de que o processamento de alimentos impacta na saúde começaram a se acumular a partir do teste de Hall, em 2019. Ainda assim, o Scientific Advisory Committee on Nutrition (SACN), do Reino Unido, e o Dietary Guidelines Advisory Committee (DGAC), dos Estados Unidos, consideram que não há evidências suficientes para adotar a Classificação NOVA.  

O experimento de Dicken dá um xeque-mate nessa desconfiança e na de pesquisadores que questionaram a qualidade de estudos de curto prazo, sugerindo que uma dieta com ultraprocessados nutricionalmente equilibrados não seria danosa à saúde. “Esse estudo saiu em um timing oportuno para preencher uma grande lacuna de evidências e começar a fazer mais perguntas”, avalia.  

Carlos Monteiro, coordenador do Nupens e o pesquisador que cunhou o termo ultraprocessados, fez um convite público após ler o estudo: “Olá, SACN do Reino Unido e DGAC dos EUA — hora de revisar seus relatórios?”, postou em seu perfil no X (antigo Twitter). Para ele, a pesquisa de Dicken pode ser um marco nos estudos da área. 

Sobre os ombros de gigantes Samuel Dicken é pesquisador do Centro de Pesquisa em Obesidade e no Departamento de Ciências Comportamentais e Saúde da University College London (UCL), e investiga a influência do estilo de vida em obesidade, saúde do coração e metabolismo. 

Parte de seu trabalho passou a focar no consumo de ultraprocessados durante seu mestrado, quando ainda entendia que o termo poderia ser um sinônimo para junk food. 

Com as evidências se acumulando no campo dos estudos observacionais mostrando a associação entre doenças crônicas não transmissíveis e o consumo de ultraprocessados, Dicken se deteve no assunto. “Em muitos desses estudos observacionais, eles ajustaram a qualidade da dieta ou a adesão às orientações alimentares de uma dieta mediterrânea, por exemplo. E as associações entre alimentos ultraprocessados e maus resultados para a saúde ainda permaneciam.” 

À época, não havia estudos clínicos que apontassem a causalidade entre o consumo destes produtos e o desenvolvimento de obesidade. Isso mudou com a publicação do ensaio clínico randomizado de Kevin Hall. 

O ensaio de Hall maravilhou Dicken, que deu um passo adiante ao desenhar seu próprio estudo. Seu ensaio clínico traz duas características inéditas: é o primeiro com uma duração tão longa e é pioneiro em oferecer uma dieta com ultraprocessados seguindo as diretrizes de um guia alimentar.  

A metodologia usada por Hall e Dicken é uma das formas mais confiáveis de produzir evidências científicas, uma vez que mede diretamente o impacto de intervenções em saúde. 

Os resultados de Dicken reforçam os de estudos anteriores, tanto de Hall como o de Shoko Hamano, de 2024: dietas com ingredientes minimamente processados geram maior perda de peso e reduzem o teor de gordura corporal.  

Hamano foi o principal autor de um estudo que acompanhou nove homens com sobrepeso ou obesos por duas semanas. Eles se alimentaram com ultraprocessados por uma semana e com alimentos minimamente processados em outra, com um intervalo de duas semanas entre elas para voltarem à sua dieta normal. Os participantes tiveram ganho de peso ao final de ambas as dietas, sendo significativamente maior após a dieta de ultraprocessados. 

Já Dicken constatou que uma dieta ultraprocessada que siga as diretrizes da alimentação saudável do guia alimentar do Reino Unido promove perda de peso, mas não reduz a gordura corporal, o que sugere que o nível de processamento dos ingredientes faz diferença na qualidade da alimentação. 

O estudo levou quatro anos para ser concluído e foi financiado pelo Instituto Nacional de Pesquisa em Saúde e Cuidado (NIHR, na sigla em inglês) e pela organização filantrópica Rosetrees Trust. Dicken reconhece a dificuldade de realizar pesquisas tão longas, mas afirma que os achados ganham força quando colocados lado a lado com diferentes tipos de evidência: “Pegamos os dados do ensaio clínico, combinamos com dados observacionais e também com os ensaios em pacientes internados, e tudo parece se alinhar. Se houver alguma limitação em qualquer um desses desenhos, ainda assim estamos chegando às mesmas descobertas.” . 

Fonte: https://ojoioeotrigo.com.br/2025/08/ultraprocessados-fazem-mal-dieta-saudavel/

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