Introdução
A privação de sono é cada vez mais comum em nossa sociedade moderna. Muitas pessoas acreditam que dormir pouco causa apenas cansaço no dia seguinte, mas os impactos são muito maiores e éisso que ao longo dos últimos 20 anos temos visto a ciência evidenciando. A Medicina do sono vem frisando que que noites maldormidas podem alterar hormônios, afetar o humor e até estimular comportamentos alimentares desregulados. Além de elevar a pressão arterial, alterar a glicemia e ser gatilho para transtornos neurológicos. Ou seja, o sono é um pilar para a nossa saúde.
Quando falamos de saúde mental, a relação entre sono e alimentação ganha ainda mais destaque. Estudos recentes identificaram que a insônia inicial e os despertares noturnos estão fortemente associados à depressão em pessoas com compulsão alimentar (TCA ou Binge eating Disorder - BED). Isso significa que cuidar do sono é tão importante quanto cuidar da alimentação.
Prevalência Global de TCA (Binge Eating Disorder)
Uma meta-análise global estimou uma prevalência média de 0,9% (IC 95%: 0,7–1,0%) para o BED no mundo. As mulheres têm maior incidência (1,4%, IC 1,1–1,7%) em comparação aos homens (0,4%, IC 0,3–0,6%) e não houve diferença significativa entre países de alta renda e de baixa/média renda. Estudos apontam que, em mulheres jovens, a prevalência de transtornos alimentares (incluindo BED) varia de 5,5% a 17,9%, e entre homens jovens, de 0,6% a 2,4%
Prevalência na América Latina (inclusive Brasil)
Uma revisão sistemática na América Latina encontrou uma prevalência média pontual de 3,53% para o BED na população geral.
O impacto da privação de sono no corpo
Dormir pouco desregula o metabolismo de várias formas. Quando o corpo não descansa, a produção de cortisol, hormônio do estresse, aumenta. Isso estimula o acúmulo de gordura abdominal e prejudica a regulação da glicose. Além disso, a privação de sono está ligada ao aumento da resistência à insulina, facilitando o surgimento de diabetes tipo 2.
Outro fator é a alteração dos hormônios da fome e saciedade. A grelina, que aumenta o apetite, sobe quando dormimos mal. Já a leptina, responsável pela sensação de saciedade, cai drasticamente. O resultado é um desejo maior por alimentos calóricos, como doces e fast food.
Essa combinação cria um terreno fértil para a compulsão alimentar e para o ganho de peso. Pessoas que sofrem com insônia tendem a comer mais durante a noite e buscam alimentos de alto valor calórico. Assim, o sono ruim pode ser um grande inimigo da manutenção de um peso saudável.
A compulsão alimentar e seus riscos
A compulsão alimentar é caracterizada por episódios recorrentes em que a pessoa consome grandes quantidades de comida em pouco tempo, acompanhados de sensação de perda de controle. Esses episódios são diferentes de um simples exagero: há sofrimento emocional e culpa após as crises.
Esse transtorno é um dos mais comuns entre os distúrbios alimentares e afeta homens e mulheres em todas as idades. Muitas vezes, ele está associado à obesidade e a dificuldades em manter hábitos alimentares equilibrados. Mas o que nem todos sabem é que ele também está fortemente relacionado à saúde mental.
Pesquisas mostram que pessoas com compulsão alimentar apresentam taxas mais altas de depressão e ansiedade. E agora sabemos que o sono tem papel essencial nessa ligação, funcionando como um fio invisível que conecta alimentação e emoções.
O elo entre insônia e depressão
Um estudo internacional analisou pacientes com compulsão alimentar e encontrou resultados muito interessantes.
O objetivo central do estudo foi investigar, em pacientes com transtorno de compulsão alimentar (TCA/BED), como diferentes componentes do comer noturno (hiperfagia vepertina e ingestões noturnas = Síndrome do comer noturno) e distúrbios do sono (insônia inicial e despertares) se associam à depressão. A hipótese era que o sono, mais do que o padrão alimentar noturno em si, poderia explicar a carga depressiva nesses pacientes.
Trata-se de um estudo observacional transversal com 153 adultos diagnosticados com TCA, atendidos em um programa clínico de tratamento e recuperação para compulsão alimentar nos EUA, no período de 2020 a 2023. A média etária foi de aproximadamente 36 anos, variando de 18 a 62 anos.
O desfecho primário avaliado foi a depressão, medida pelo Patient Health Questionnaire-9 (PHQ-9), instrumento validado e amplamente utilizado em estudos psiquiátricos para triagem e avaliação da gravidade da depressão.
A psicopatologia alimentar global foi mensurada por meio do Eating Disorder Examination Questionnaire (EDE-Q), utilizado como variável de ajuste para o modelo, assegurando que o impacto observado fosse de fato relacionado ao sono, e não apenas à gravidade do transtorno alimentar. Para caracterizar a síndrome do comer noturno, os pesquisadores aplicaram o Night Eating Questionnaire (NEQ). Foram diferenciados dois fenômenos: hiperfagia vespertina (ingestão de mais de 25% das calorias diárias após o jantar) e ingestões noturnas (alimentação após despertares durante a noite).
Os distúrbios de sono analisados incluíram insônia inicial (dificuldade para pegar no sono) e despertares noturnos (sono fragmentado), sendo essas variáveis introduzidas como potenciais preditores independentes de depressão.
A análise estatística foi feita por regressão linear hierárquica. No primeiro nível, controlou-se a gravidade global do transtorno alimentar (EDE-Q). Em seguida, introduziram-se variáveis de comer noturno. Por fim, acrescentaram-se as variáveis de sono para verificar se explicavam variância adicional nos sintomas depressivos.
Na análise bivariada, tanto insônia inicial, quanto despertares noturnos e hiperfagia vespertina se associaram à depressão. As ingestões noturnas não mostraram correlação significativa com o humor deprimido.
No modelo final ajustado, apenas insônia inicial (p<0,01) e despertares noturnos (p<0,05) permaneceram significativamente associados à depressão. A hiperfagia vespertina perdeu significância quando as variáveis de sono foram introduzidas, e as ingestões noturnas seguiram sem associação.
Isso sugere que, em pacientes com TCA, é o sono interrompido e não necessariamente os comportamentos alimentares noturnos o fator mais relevante na determinação de sintomas depressivos.
Descritivamente, 41% dos participantes relataram hiperfagia vespertina. Cerca de 49% relataram acordar ao menos uma vez por semana durante a noite, e entre estes, 42% afirmaram não se alimentar nesses episódios. Esses números ilustram a alta prevalência de sono fragmentado nessa população clínica.
Outro achado relevante foi a associação entre insônia inicial e ideação suicida. Além disso, observou-se correlação negativa com idade, sugerindo que pacientes mais jovens apresentam risco aumentado de pensamentos suicidas quando associados a distúrbios de sono.
Esses dados reforçam a necessidade de considerar o sono como parte essencial da avaliação psiquiátrica e nutricional em pacientes com TCA, pois, pode representar um alvo terapêutico de igual ou até maior importância que o manejo alimentar noturno.
Os autores reconhecem a limitação do desenho transversal, que não permite inferir causalidade. Ainda assim, os modelos hierárquicos ajustados fortalecem a hipótese de que distúrbios do sono exercem um papel independente sobre a depressão.
Outras limitações incluem o uso exclusivo de medidas de autorrelato, o foco em mulheres brancas e em indivíduos tratados em clínicas de maior complexidade, o que pode reduzir a generalização dos resultados. A ausência de controle para a frequência e intensidade das crises de compulsão também foi apontada.
Apesar disso, o estudo apresenta forças metodológicas importantes: amostra clínica de porte razoável, uso de instrumentos validados e análise estatística robusta, capaz de discriminar o papel incremental das variáveis de sono.
Do ponto de vista clínico, recomenda-se que pacientes com TCA e sintomas depressivos sejam rotineiramente avaliados quanto a insônia inicial e despertares noturnos. Intervenções baseadas em terapia cognitivo-comportamental para insônia (TCC-I), higiene do sono e ajustes no estilo de vida podem ser incorporadas ao tratamento padrão.
Fica a sugestão de que pesquisas futuras utilizem desenhos longitudinais e incorporem medidas objetivas de sono (como actigrafia ou polissonografia) para confirmar os achados e elucidar se a melhora do sono tem impacto causal na redução da depressão em TCAP.
O estudo ainda aponta que a abordagem clínica deve ir além da alimentação. Focar exclusivamente no comportamento alimentar noturno pode negligenciar um componente crucial do quadro: o sono fragmentado.
Em conclusão, a evidência sugere que insônia inicial e despertares noturnos são fatores independentes associados à depressão em pacientes com compulsão alimentar periódica, ao passo que hiperfagia vespertina e ingestões noturnas isoladamente não aumentam o risco quando se ajusta para o sono. Assim, estratégias de tratamento devem obrigatoriamente incluir avaliação e manejo de distúrbios do sono.
Curiosamente, o simples fato de comer durante a noite não teve a mesma força na relação com a depressão. Isso significa que, para muitos pacientes, é o sono ruim que aumenta o risco de sintomas depressivos, e não apenas a compulsão alimentar.
Essa descoberta reforça a importância de olhar para o sono com mais atenção no tratamento de transtornos alimentares. Muitas vezes, melhorar a qualidade do descanso pode ser um passo essencial para reduzir a depressão e o sofrimento emocional.
Comer à noite: vilão ou consequência?
Muitas pessoas acreditam que comer durante a noite é sempre prejudicial. Mas a ciência mostra que o problema não está apenas no horário, e sim na qualidade do sono que antecede ou acompanha esses episódios.
Quando a pessoa acorda várias vezes durante a noite, há maior chance de buscar alimentos calóricos como forma de compensação. Isso é chamado de comer emocional, um comportamento usado para lidar com a ansiedade ou o estresse.
No entanto, quando a análise é ajustada para os distúrbios do sono, percebe-se que o risco de depressão está mais ligado à insônia do que ao ato de comer à noite em si. Isso muda a forma de enxergar o tratamento desses pacientes.
Distúrbios do sono relacionados à alimentação
Além da insônia, existem distúrbios específicos que ligam sono e alimentação. A síndrome do comer noturno é um deles. Nesse quadro, a pessoa consome mais de 25% das calorias do dia após o jantar. Esse padrão está associado à obesidade e maior risco metabólico.
Outro distúrbio é o transtorno alimentar relacionado ao sono, no qual a pessoa come durante episódios de sonambulismo e não se lembra depois. Apesar de menos comum, esse problema também gera impacto metabólico e psicológico.
Todos esses distúrbios exigem avaliação profissional para diagnóstico correto. Nem sempre a queixa é apenas sobre a comida — muitas vezes, o sono é a raiz do problema.
O papel da ansiedade na privação de sono
A ansiedade é um dos fatores que mais interferem na qualidade do sono. Pessoas ansiosas costumam demorar mais para adormecer, acordam durante a noite e apresentam sono fragmentado. Esse quadro é chamado de insônia inicial e intermediária.
Quando isso se repete com frequência, a privação de sono aumenta ainda mais a ansiedade, criando um ciclo difícil de quebrar. Para aliviar esse desconforto, muitos recorrem à comida, reforçando o padrão de compulsão alimentar.
Esse comportamento é comum e pode ser identificado como uma forma de fuga emocional. Ao compreender essa relação, é possível pensar em estratégias terapêuticas mais eficazes, que tratem a ansiedade e melhorem a higiene do sono ao mesmo tempo.
Sono, obesidade e metabolismo
Dormir pouco não afeta apenas a saúde mental. O metabolismo também sofre de forma significativa. Estudos mostram que a privação de sono aumenta a resistência à insulina, dificultando o controle do açúcar no sangue e elevando o risco de diabetes tipo 2.
Além disso, há maior tendência ao ganho de peso, pois o corpo busca energia extra em alimentos de alta densidade calórica. Isso ajuda a explicar por que a obesidade está tão associada a padrões de sono ruins.
Para pacientes com compulsão alimentar, o sono ruim é um agravante poderoso. Isso reforça que dormir bem é uma das estratégias mais simples e eficazes para regular o metabolismo e manter o peso sob controle.
Estratégias para melhorar o sono
A boa notícia é que existem medidas práticas para melhorar a qualidade do sono. Uma delas é manter horários regulares para deitar e acordar, ajudando o corpo a entrar em ritmo circadiano adequado. Elaborei um texto e publiquei aqui no blog, medidas de higiene de sono, que talvez possam te auxiliar: https://www.ecologiamedica.net/2012/02/metodos-de-higiene-do-sono-o-que.html
Reduzir o uso de telas antes de dormir também faz grande diferença. A luz azul emitida por celulares e computadores atrapalha a produção de melatonina, o hormônio do sono. Criar um ambiente escuro e silencioso favorece o adormecer.
Outras estratégias incluem evitar cafeína à noite, praticar exercícios físicos regularmente e adotar técnicas de relaxamento, como respiração profunda e meditação.
Conclusão
A relação entre privação de sono, compulsão alimentar e depressão é clara. Não se trata apenas de comer em horários inadequados, mas de compreender como o sono influencia diretamente os hormônios, o humor e o comportamento alimentar.
Pessoas com insônia apresentam maior risco de desenvolver compulsão alimentar, depressão e até ideação suicida. Por isso, o tratamento deve ir além da alimentação e incluir uma avaliação detalhada da qualidade do sono.
Cuidar do descanso é uma forma de cuidar da mente e do corpo. Investir em noites bem dormidas pode ser tão importante quanto adotar uma dieta equilibrada. Afinal, sono de qualidade é parte essencial da saúde integral.
Fontes:
- https://journals.lww.com/co-psychiatry/fulltext/2016/11000/epidemiology_of_eating_disorders_in_latin_america_.8.aspx?utm_source=chatgpt.com
- https://www.medscape.com/viewarticle/sleep-disruption-tied-depression-binge-eating-disorder-2025a1000lbo?ecd=mkm_ret_250824_mscpmrk-OUS_InFocus_etid7657302&uac=190836ET&impID=7657302
- https://www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S0022395625004467
Autor: Dr. Frederico Lobo - Médico Nutrólogo - CRM-GO 13192 - RQE 11915
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