A crescente demanda por potentes medicamentos contra obesidade, como semaglutida e tirzepatida, está alimentando o crime no Brasil.
Assaltantes armados estão mirando farmácias, e contrabandistas têm sido detidos em aeroportos brasileiros com canetas de medicamentos presas ao corpo e escondidas na roupa.
Cerca de 8 mil canetas de tirzepatida — ainda não legalmente disponíveis no país — foram apreendidas desde junho de 2024, segundo a Receita Federal. Em 2024, foram registrados 39 assaltos a farmácias, em comparação com apenas um caso em 2022. Grande parte dessas atividades ilícitas está concentrada em São Paulo, uma das cidades mais ricas do Brasil, onde mais farmácias vendem esses medicamentos caros e mais pessoas têm poder aquisitivo para comprá-los.
A atratividade criminosa — especialmente no caso da tirzepatida — é atribuída a uma tríade: benefícios à saúde, alto custo (uma única dose pode alcançar mais de US$1700 no mercado negro brasileiro) e indisponibilidade nas farmácias. O medicamento está prestes a chegar legalmente ao país — o Mounjaro (Eli Lilly, EUA) será lançado no mercado brasileiro em 7 de junho. Mas ainda é incerto se essa disponibilidade legal conterá a onda de crimes relacionados à tirzepatida, o que dependerá em parte do preço. O valor final para o consumidor ainda não foi definido, mas a Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos fixou o preço máximo em R$ 3791 (cerca de US$670 por mês), o que poderá reduzir significativamente os lucros dos criminosos.
Inicialmente desenvolvidos para o tratamento do diabetes tipo 2, a semaglutida (Ozempic e Wegovy; Novo Nordisk, Dinamarca) e a tirzepatida (Mounjaro e Zepbound; Eli Lilly) mimetizam os hormônios incretínicos naturais GLP-1 e GIP, aumentando a secreção de insulina, reduzindo o apetite e retardando o esvaziamento gástrico. A perda de peso resultante — inicialmente um efeito colateral positivo em pessoas com diabetes tipo 2 — levou à utilização desses medicamentos especificamente para emagrecimento.
“Com esses novos medicamentos, a barreira científica foi rompida”, diz Bruno Halpern, presidente da Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e Síndrome Metabólica (São Paulo) e presidente eleito da World Obesity Federation (Londres), referindo-se à longa busca fracassada por medicamentos eficazes contra obesidade, que “ou não eram seguros, tinham baixa eficácia média, ou ambos”. Dhruv Kazi, cardiologista e economista da saúde da Harvard Medical School (EUA), os descreve como “terapias únicas em uma geração, com potencial para alterar materialmente a saúde da população, se forem usadas corretamente e em larga escala”.
Esses medicamentos inovadores já movimentam grandes cifras no Brasil. O país é um mercado estratégico para as duas empresas fabricantes, e apenas o Ozempic gerou mais de US$500 milhões em vendas em 2023. “20% dos adultos no Brasil têm obesidade, e quase 40% estão com sobrepeso”, diz Eduardo Nilson, epidemiologista e pesquisador em nutrição da Fiocruz (Rio de Janeiro). “É um mercado enorme, e sabemos que está crescendo.”
Ambos os medicamentos são aprovados pela Anvisa para o tratamento do diabetes, e a semaglutida (Wegovy) é aprovada para obesidade. No entanto, nenhum deles está disponível no Sistema Único de Saúde (SUS), que cobre ou fornece medicamentos gratuitamente — o que significa que, hoje, só é possível obtê-los no setor privado. O alto custo (US$180–230 por mês de Ozempic e US$220–420 por mês de Wegovy) os torna inacessíveis para a maioria da população brasileira, onde a renda mensal média é de cerca de US$500. “Claramente, as pessoas mais pobres são as que mais precisam [dessas medicações]”, diz Naveed Sattar, especialista em medicina cardiometabólica da Universidade de Glasgow (Reino Unido) e presidente do programa de metas de saúde da missão contra a obesidade do governo britânico, “mas atualmente têm pouca chance de obtê-las”.
Por outro lado, para brasileiros com recursos, os medicamentos são não só acessíveis, como também fáceis de adquirir. Halpern afirma que farmácias frequentemente vendem os medicamentos sem exigir receita médica, e versões manipuladas — preparadas por farmacêuticos licenciados, mas não reguladas da mesma forma que os produtos comerciais — são anunciadas em redes sociais e até aplicadas (ilegalmente) em clínicas médicas legítimas. Essas práticas continuam apesar dos alertas de órgãos reguladores e sociedades profissionais no Brasil e no mundo. Em 16 de abril, a Anvisa aprovou uma medida para controlar mais rigidamente os agonistas do receptor de GLP-1, exigindo que farmácias retenham as receitas. “Claro que isso não resolve tudo”, diz Nilson, “mas mostra que as autoridades estão cientes e agindo.”
A relevância desses medicamentos para a saúde da população brasileira se destaca diante dos dados alarmantes: quase 80% dos adultos (e mais da metade de crianças e adolescentes) poderão estar com sobrepeso ou obesidade até 2050, se as tendências atuais continuarem. “É uma longa jornada de melhoria”, diz Halpern, e os medicamentos são apenas uma parte dela. A disponibilidade da semaglutida para tratar a obesidade “é uma revolução por si só”, diz Nilson, “mas não pode ser vista como uma solução mágica”. De fato, existe a percepção de que muitas pessoas compram esses medicamentos sem necessidade médica. Halpern afirma que muitos brasileiros ricos os usam por “um desejo social de ser magro”.
No entanto, até que ponto esses medicamentos estão sendo usados apenas com fins estéticos é uma questão debatida. Sattar alerta que focar excessivamente nesse uso pode banalizar motivações individuais complexas. “Acho que subestimamos o quanto as pessoas não querem viver com obesidade, e o que estão dispostas a fazer para evitar isso”, afirma. Kazi concorda: “É importante não assumir que a indicação para controle de peso é trivial. Do ponto de vista da saúde e da qualidade de vida, ela é extremamente significativa para essas pessoas. Ainda assim”, continua ele, “os gastos previstos com esses medicamentos provavelmente vão pressionar até os sistemas de saúde mais bem financiados.”
A acessibilidade da semaglutida poderá melhorar em breve, dependendo da aprovação de uma proposta da Novo Nordisk para inclusão do Wegovy no SUS. Caso aprovada, o uso será provavelmente limitado a pacientes com maior necessidade médica, como ocorre em outros países.
Até que os preços caiam substancialmente, esses medicamentos continuarão inacessíveis à maioria da população e caros demais para os sistemas de saúde — e provavelmente continuarão sendo alvos de crime. Os preços devem cair à medida que novos produtos entrem no mercado e as patentes expirem, como já está ocorrendo no Brasil. A patente do Ozempic expira em 2026, e várias farmacêuticas nacionais já se preparam para produzir versões genéricas. A produção nacional — parte de uma iniciativa mais ampla de fortalecimento da economia — deve aliviar a demanda e melhorar o acesso.
No fim das contas, conter o avanço da obesidade exigirá foco em prevenção, afirma Halpern, destacando que “tratamento é diferente de prevenção”. Nilson complementa: é preciso uma abordagem intergeracional. “Temos que pensar em toda a sociedade, pois teremos uma nova geração com risco maior de obesidade.” Ambos defendem o papel importante dos medicamentos. “Sabemos que não são a solução por si só”, diz Nilson, “mas são um elemento importante do tratamento que deve ser considerado.”
O progresso contra a obesidade no Brasil (e em outros lugares) tem sido lento, em parte por conta de um ambiente cada vez mais obesogênico. “Tudo conspira contra uma vida saudável”, diz Sattar. Nilson concorda: “Não adianta educar sobre alimentação saudável se esses alimentos não estão disponíveis ou são caros. E não se pode exigir atividade física de quem trabalha o dia inteiro e passa 2 a 3 horas por dia no trânsito.”
Avançar nessa luta também é dificultado pelo estigma social persistente. “A gordofobia é um dos poucos preconceitos ainda socialmente aceitos, até por médicos”, disse Halpern à The Lancet em 2024, destacando que o medo de julgamento faz com que muitas pessoas com obesidade evitem buscar ajuda. Ele também teme que a visão dos medicamentos como “drogas da moda” afaste os pacientes que realmente precisam deles — um problema agravado pela ideia de que obesidade é uma escolha pessoal, e não uma doença crônica.
Nilson, no entanto, é otimista quanto à reversão desse cenário, em parte pela longa trajetória do país no combate à obesidade. O Brasil foi o primeiro país a lançar uma estratégia intersetorial contra a doença (em 2014) e o primeiro a assumir metas concretas no âmbito da Década de Ação sobre Nutrição da ONU, comprometendo-se em 2017 a conter o crescimento da obesidade (então em 21%), reduzir o consumo de bebidas açucaradas em 30% e aumentar o consumo regular de frutas e verduras em quase 18% — tudo em dois anos.
O país não atingiu nenhuma das metas, o que Nilson atribui à implementação incompleta da estratégia de 2014 e à ausência de políticas regulatórias e fiscais voltadas ao ambiente alimentar e aos ultraprocessados, em parte devido à forte atuação do lobby da indústria alimentícia. O tempo também pesa. “Não vamos vencer a obesidade rapidamente. É algo que levará uma década — ou décadas”, afirma.
Desde 2019, o Brasil intensificou suas ações com políticas progressistas como os rótulos frontais de advertência — medida que deve reduzir a obesidade em 5 anos e economizar entre US$5 e 6 milhões em custos de saúde. Outras medidas recentes incluem limite de 2% de gordura trans nos alimentos (2021), proibição da venda de ultraprocessados em escolas (2023) e uma reforma tributária com incentivos ao consumo saudável: imposto sobre alimentos não saudáveis e isenção para alimentos saudáveis e sustentáveis. O Congresso também analisa um projeto de lei que criminaliza a discriminação contra pessoas com sobrepeso ou obesidade.
O impacto dessas políticas, junto à chegada da tirzepatida legal e da semaglutida produzida localmente, sobre a obesidade — e o crime — no Brasil, só ficará claro com o tempo e com mais dados.
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By Alberto Dias Filho - Digital Opinion Leader
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Embaixador das Comunidades Médicas de Endocrinologia - EndócrinoGram e DocToDoc