Os hábitos alimentares inadequados e a indisciplina alimentar demonstram ser as principais causas do aumento dos problemas metabólicos. Os sinais e sintomas da disfunção labiríntica parecem estar entre as primeiras queixas dos pacientes com diabetes latente ou diminuição da tolerância à glicose. Observa-se que, uma parcela significativa dos indivíduos atendidos em nossa população ambulatorial, com queixas de sintomas relacionados ao equilíbrio e audição, são portadores de distúrbios no metabolismo dos carboidratos.
Ao longo dos anos, vêm-se observando que o tratamento dietético pode reduzir de forma acentuada, os sintomas da disfunção labiríntica. Com base nesta observação, buscamos revisar a literatura de forma a avaliar a relação entre o manejo dietético e o controle da função labiríntica. De forma geral, a literatura concorda com a nossa observação de que o tratamento dietético pode diminuir os sintomas da disfunção labiríntica, proporcionando o alívio para o paciente e melhorando a sua qualidade de vida.
As queixas vestibulares e auditivas têm, freqüentemente, sido associadas ao metabolismo anormal dos carboidratos e dos lipídios. Estima-se que a ocorrência dos distúrbios do metabolismo dos carboidratos, esteja entre 42% a 80% dos pacientes portadores de zumbidos e tonturas e, se percebe a nítida necessidade de demonstrar o impacto destes distúrbios sobre o funcionamento da orelha interna, pois nos parece evidente a melhora dos sintomas com a instituição da dieta.
LABIRINTOPATIA METABÓLICA
Diversas condições metabólicas afetam intensamente o funcionamento do ouvido interno. Estas são capazes de determinar o aparecimento de alterações labirínticas que, na maioria dos casos, são decorrentes de distúrbios no metabolismo de carboidratos (SILVA, 2000).
A condição metabólica mais freqüentemente relacionada à disfunção da orelha interna refere-se aos distúrbios na secreção da insulina, com ou sem hipoglicemia reativa concomitante.
As estruturas labirínticas apresentam atividade metabólica intensa, sendo altamente sensíveis aos níveis de oxigênio, glicose e ATP (Adenosina Trifosfato). O labirinto é particularmente sensível a pequenas variações nos níveis plasmáticos de glicose e insulina. Tanto a hipoglicemia quanto a presença de altos níveis de insulina interferem na atividade enzimática responsável pelo potencial endococlear (BITTAR, 2004).
Nas labirintopatias ou afecções vestibulococleares, os sintomas mais freqüentes, em pacientes com hiperinsulinemia, são a vertigem típica, associada a sintomas auditivos, como tinnitus, sensação de plenitude auricular, disacusia e cefaléia, limitando a qualidade de vida do indivíduo. É notável que os antecedentes pessoais e familiares dos portadores de labirintopatia metabólica revelam hábitos de alimentação inadequados, sedentarismo e tendência familiar para doenças como diabetes, hipertensão arterial e distúrbios hormonais (SILVA, 2000). De acordo com Ganança (1995), dois terços dos casos ocorrem em pessoas do sexo feminino, na faixa etária compreendida entre os 35 e 55 anos (80% dos casos), com tendência à obesidade , queixa de crises vertiginosas, já tendo sido submetidas a diversos especialistas, apresentando melhora parcial no início, porém sem resultado a longo prazo.
É evidente que, nos distúrbios metabólicos sistêmicos, o labirinto é atingido precocemente, sinalizando a necessidade de intervenção. Em relação à orientação terapêutica, o distúrbio deve ser diagnosticado e corrigido. Na maioria das vezes a correção requer orientação alimentar.
A HIPERINSULINEMIA COMO FATOR DESENCADEANTE DA LABIRINTOPATIA
Os carboidratos constituem a fonte mais importante de energia do organismo sendo que o principal carboidrato é a glicose (CINGOLANI, 2004). Os carboidratos são ingeridos com a dieta, principalmente na forma de polissacarídeos (amido) e dissacarídeos (sacarose e lactose). Após a sua digestão, os carboidratos passam para a circulação como monossacarídeos. Os monossacarídeos glicose, frutose e galactose são absorvidos, através da mucosa intestinal, e chegam até o fígado através da veia porta (CINGOLANI, 2004). O fígado libera glicose na corrente sangüínea, onde seu nível é mantido por ações dos hormônios. A elevação dos níveis séricos de glicose estimula insulina, que retira glicose da corrente sangüínea para as células (LIPPINCOTT, 2004).
Dentre os distúrbios do metabolismo do açúcar aceitos atualmente como responsáveis por alterações labirínticas, estão as disfunções metabólicas da glicose, incluindo diabetes, hipoglicemia reativa e hiperinsulinemia (BITTAR, 2004). A secreção de insulina, que é constante, pode ser modificada de acordo com estímulos específicos que podem aumentar ou diminuir sua taxa secretória (DOUGLAS, 2002). Além dos neurotransmissores e hormônios, os nutrientes constituem-se estímulo para a secreção insulínica. Os níveis aumentados de insulina resultam na redução da oferta de oxigênio para as células, o que induz prejuízo à função auditiva (BITTAR, 2003).
A insulina e, secundariamente, a glicose, seriam fundamentais na produção energética e ao adequado funcionamento da bomba de sódio e potássio. Ao nível celular e bioquímico isto se explica pela composição dos líquidos labirínticos: a endolinfa, é rica em potássio e pobre em sódio. A perilinfa, ao contrário, é rica em sódio e pobre em potássio (FERREIRA JÚNIOR, 2000). Como os líquidos são separados por uma membrana permeável, existe uma tendência às trocas dos líquidos gerando hipernatremia na endolinfa, deslocando água para este compartimento, provocando vertigem, zumbido, hipoacusia e plenitude auricular (FERREIRA JÚNIOR, 2000).
Com o adequado fornecimento de energia, obtida pela oxidação da glicose, o sódio retorna à perilinfa em troca de potássio, evitando as alterações clínicas citadas. Portanto, para manter o equilíbrio da bomba de sódio e potássio é necessário um aporte adequado de glicose e oxigênio, pois é através dessas duas substâncias que haverá a liberação de energia essencial para o funcionamento adequado do ouvido interno.
Do contrário, o aporte insuficiente de energia, gerado pela hiperinsulinemia, provoca a inativação da bomba de sódio e potássio o que, segundo Silva (2000), resulta também em queixas relativas à intolerância a sons, dificuldade de concentração, tendência à obesidade, irritabilidade, sonolência matinal e migrânea.
OS ALIMENTOS NO CONTROLE DA INSULINEMIA
Quando nos alimentamos, o processo de absorção dos nutrientes ocorre de forma gradual e contínua, aproximadamente 20 minutos após o início da refeição (POIAN, 2005). Após uma refeição, podem ser observados níveis plasmáticos de glicose alcançando o dobro dos níveis basais. Daí a importância de que a secreção de insulina ocorra também de forma gradual, acompanhando as oscilações dos níveis plasmáticos de glicose (POIAN, 2005).
O estímulo à secreção de insulina se dá por diversos fatores e qualquer desequilíbrio na concentração fisiológica de glicose plasmática pode determinar alterações e danos em vários tecidos/órgãos (POIAN, 2005).
O aumento na incidência de diabetes evidencia uma inabilidade gradual do pâncreas na produção de elevadas concentrações de insulina ao longo da vida.
Segundo Fukuda (2003), o consumo de sacarose tem sido exagerado nas últimas décadas e nosso organismo não teve o tempo necessário para adaptar-se às elevadas quantias ingeridas. O resultado dessa inadequação é a hiperinsulinemia com conseqüente hipoglicemia reativa e sintomas como cefaléia, sonolência, tonturas, etc (BITTAR, 2004).
A absorção de alimentos contendo carboidratos depende de sua complexidade estrutural, seu teor de fibras e sua apresentação. Isto resulta em graus variáveis de absorção da glicose neles contidos (COSTA, 2004). A intervenção nutricional nos distúrbios do metabolismo dos carboidratos, prevê o controle tanto do índice glicêmico dos alimentos utilizados na dieta quanto da carga glicêmica presente em cada refeição. O índice glicêmico de um alimento está relacionado ao impacto de sua composição na glicemia (alto, moderado ou baixo) após a sua ingestão. Já a carga glicêmica está relacionada ao impacto resultante do volume ingerido (alto, médio ou baixo). Um alimento que apresenta alto índice glicêmico, não necessariamente vai representar alta carga glicêmica na refeição, se a quantidade ingerida estiver sob controle. Na prática clínica, observa-se que, uma dieta com baixa carga glicêmica reduz os lipídios sangüíneos em indivíduos hipertrigliceridêmicos; reduz a secreção de insulina e melhora o controle global da glicemia em pacientes diabéticos insulino-dependentes e não insulino-dependentes.
O incremento de alimentos ricos em fibras solúveis e o adequado fracionamento das refeições, também buscam retardar a taxa de liberação de nutrientes no organismo, com repercussão positiva no controle dos distúrbios metabólicos. Quanto maior o teor de fibras do alimento e o retardo do esvaziamento do estômago, menor será a elevação da glicose no sangue após sua ingestão. Por outro lado, de acordo com Costa, 2004, a “pré-digestão” dos alimentos (amassar, triturar, esmagar, ralar e o excessivo cozimento) pode facilitar e aumentar a absorção da glicose. Neste caso, a alteração do índice glicêmico, é dependente dos outros alimentos ingeridos na mesma refeição e do modo de preparo dos mesmos.
Além do controle da quantidade, da qualidade, da freqüência e da combinação dos alimentos, é fundamental que sejam excluídos dos hábitos alimentares e de vida o consumo de álcool, da cafeína e o uso do tabaco, por conterem substâncias estimulantes da liberação da insulina.
Shils (2003) afirma que diferentes indivíduos podem ter respostas glicêmicas vastamente diferentes a um alimento, dependendo do seu estado de tolerância à glicose, idade e peso. Uma das mais eficazes opções terapêuticas parece ser a utilização de dietas nutricionais adequadas a cada caso, para que o tratamento seja dirigido à causa do distúrbio.
A PARTICIPAÇÃO DA DIETA NO CONTROLE DA LABIRINTOPATIA METABÓLICA
A dieta é a principal arma no combate aos sintomas causados por alterações do metabolismo da glicose ou da insulina. Está bem estabelecido que 90% dos pacientes submetidos a orientações dietéticas têm alívio ou cura dos sintomas (BITTAR, 1998 apud Mangabeira-Albernaz (1984).
Na prática clínica, observa-se que, durante o tratamento, os indivíduos com distúrbio labiríntico e alterações na curva insulinêmica, têm os sintomas reduzidos, em diferentes graus de intensidade. Entre três e seis meses de acompanhamento os mesmos desaparecem, quase em sua totalidade.
Nota-se, também, que os sintomas mais freqüentes e mais beneficiados com o uso da dieta são a cefaléia, a tontura, a sonolência e a plenitude auricular. Após a avaliação dos indivíduos, conclui-se que a maioria dos casos está relacionada a vícios nutricionais comuns.
Acredita-se que a intervenção nutricional precoce, em indivíduos que apresentam distúrbios da audição e do equilíbrio de origem metabólica, pode ser eficaz na redução ou mesmo no desaparecimento dos sintomas, contribuindo para o alívio do paciente e para uma melhor qualidade de vida. Um controle metabólico adequado pode retardar o aparecimento ou a progressão de complicações crônicas.
REFERÊNCIAS
BITTAR, R. S. M.; BOTTINO, M. A.; VENOSA, A. et al. 2004. Vestibular impairment secondary to glucose metabolic disorders: reality or myth? Revista Brasileira de Otorrinolaringologia, v.70, n.6, nov/dez. São Paulo. 801-6.
BITTAR, R. S. M.; BOTTINO, M. A.; ZERATI, F.E. et al. 2003. Prevalência das alterações metabólicas em pacientes portadores de queixas vestibulares. Revista Brasileira de Otorrinolaringologia. v.69, n.1 jan/fev. São Paulo.
BITTAR, R. S. M; SANCHEZ, T. G.; SANTORO, P.P et al. 1998. O metabolismo da glicose e o ouvido interno. Arquivos Internacionais de Otorrinolaringologia. V.2 Ed.1. São Paulo. 112-20.
CINGOLANI, G. C. 2004. Metabolismo dos carboidratos. In: CINGOLANI, H. E.; HOUSSAY, A. B. Fisiologia humana de Houssay. 7. ed. Porto Alegre: Artmed. 508-16.
COSTA, A. A; ALMEIDA NETO, J. S. 2004. Manual de diabetes: educação, alimentação, medicamentos, atividades físicas. 4. ed. São Paul Sarvier.
DOUGLAS, Carlos R. 2002. Tratado de fisiologia aplicada à nutrição. São Paul Robe Editorial.
LIPPINCOTT, W. & W. 2004. Nutriçã incrivelmente fácil. Rio de Janeir GUANABARA KOOGAN.
FERREIRA JÚNIOR, C. A.; GUIMARÃES, R. E. S.; BECKER, H. M. G et al. 2000. Avaliação metabólica do paciente com labirintopatia. Arquivos da Fundação Otorrinolaringologia, São Paulo, v.4, n.1 jan/fev/mar.
FUKUDA, Y. 2003. Otorrinolaringologia. Guias de medicina ambulatorial e hospitalar. São Paul Manole.
GANANÇA, M. M.; FUKUDA, Y. 1995. Labirintopatias vasculares e metabólicas. In: HUNGRIA H. Otorrinolaringologia. 7 ed. 393-401. Rio de Janeir GUANABARA KOOGAN. 393-401.
MANGABEIRA-ALBERNAZ, P. L. M. 1995. Doenças metabólicas da orelha interna. RBM. 2(1): São Paulo. 18-22.
POIAN, A. T.; CARVALHO-ALVES P. C. 2005. Hormônios e metabolism integração e correlações clínicas. São Paul Atheneu.
SHILS, M. E et al. 2003.Tratado de nutrição moderna na saúde e na doença. 9. ed. São Paul Manole.
SILVA, M. L. G et al. 2000. Labirintopatias de origem metabólica. In: SILVA M. L. G; MUNHOZ M. S. L; GANANÇA M. M; CAOVILLA, H. H. Quadros clínicos otoneurológicos mais comuns. 37-45. São Paul Atheneu.
Fonte: http://www.brasilclinicas.com.br/artigos/ler.aspx?artigoID=67
ORIENTAÇÕES NUTROLÓGICAS PARA LABIRINTOPATIAS
- Não permaneça mais de três horas sem se alimentar, sendo que deve-se evitar refeições apenas com carboidratos, portanto sempre acrescente algo que altere a carga glicêmica (gordura, proteína, fibras);
- Procure comer devagar e mastigar bem os alimentos;
- Coma frutas (com baixo índice glicêmico) e legumes e verduras pelo menos duas vezes ao dia;
- É recomendado a suspensão do consumo de álcool e cigarro;
- Beba no minimo 40ml/kg/dia de água:
- Faça atividades físicas e descubra a qual você se adapta mais, a prática de atividade física é crucial no tratamento, em especial musculação;
- Evite bebidas estimulantes como café, chá preto, chá verde e chocolates;
- Evite açúcares, trocando-o pelos adoçantes;
- Diminua o consumo de sal;
- Evite na medida do possível, de situações de estresse, aumentando o tempo de lazer;
- Substitua a fritura por alimentos assados;
- Consuma fontes de zinco, potássio, magnésio, complexo B e omega 3.
terça-feira, 6 de outubro de 2015
Orientações nutrológicas para distúrbios labirínticos
Postado por
Dr. Frederico Lobo
às
10:50
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sábado, 3 de outubro de 2015
A contaminação das águas e a disseminação de doenças de proliferação hídrica
“Ainda coletamos ao redor de 50% do esgoto doméstico que produzimos nas cidades (no ambiente rural a situação é ainda mais grave) e tratamos menos de 30% disso antes de lançar aos rios esses dejetos”, comenta o virologista.
“As causas da contaminação da água no Brasil estão intrinsecamente ligadas a um processo de rápida e expressiva expansão dos centros urbanos, especialmente na segunda metade do século XX”, diz Fernando Spilki à IHU On-Line, em entrevista concedida por e-mail.
Segundo o pesquisador, a expansão urbana foi feita sem planejamento e os corpos d’água foram “considerados meros receptores e canais de escoamento de resíduos domésticos e industriais. Era forte a ideia (e ainda é) da máxima de que a ‘diluição é a solução’, quanto maior ou mais caudaloso um corpo hídrico, mais contaminação se poderia jogar nele. O irônico é que justamente desses mananciais é que advém a maior parte da água destinada ao consumo nas grandes cidades”, pontua.
Na entrevista a seguir, Spilki comenta que além da falta de tratamento do esgoto, as águas contaminadas são um potencial para o desenvolvimento de uma série de vírus causadores de doenças. “Há uma gama de doenças de veiculação hídrica (especialmente diarreias e hepatites) e de doenças indiretamente relacionadas ao manejo da água (Dengue, Chikungunya, Zika, Febre Amarela) das quais ainda não nos livramos, ou pelo contrário, que recém chegaram e já com grande impacto em saúde pública. Temos que mirar sim o futuro, mas sem esquecer que temos uma situação no Brasil que mescla doenças de uma população desenvolvida e mais idosa com outras típicas dos países em desenvolvimento”.
Fernando Spilki é graduado em Medicina Veterinária pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, com mestrado em Ciências Veterinárias pela UFRGS, na área de Virologia Animal, e doutorado em Genética e Biologia Molecular, área de Microbiologia, pela Universidade Estadual de Campinas. Atualmente leciona na Universidade Feevale.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Quais são as causas da contaminação das águas brasileiras? A água de todas as regiões brasileiras está contaminada?
Fernando Spilki – As causas da contaminação da água no Brasil estão intrinsecamente ligadas a um processo de rápida e expressiva expansão dos centros urbanos, especialmente na segunda metade do século XX. Essa expansão se deu de forma fragmentada, sem planejamento adequado. Justamente por isso, pela falta de planejamento, e por uma óptica que já podia ser considerada anacrônica mesmo para a época, os corpos d’água foram em muitos momentos considerados meros receptores e canais de escoamento de resíduos domésticos e industriais. Era forte a ideia (e ainda é) da máxima de que a “diluição é a solução”, quanto maior ou mais caudaloso um corpo hídrico, mais contaminação se poderia jogar nele. O irônico é que justamente desses mananciais é que advém a maior parte da água destinada ao consumo nas grandes cidades.
Outros determinantes históricos importantes foram a concepção dos militares de que governo e desenvolvimento estavam ligados a grandes obras de distribuição de água potável, sem considerar a necessária expansão na outra via de coleta e tratamento de esgoto e o foco do crescimento baseado na indústria e na revolução verde, em muitos casos a qualquer custo do ponto de vista ambiental. De alguns destes males não estamos livres até hoje, mesmo passadas décadas do processo de redemocratização. Ainda coletamos ao redor de 50% do esgoto doméstico que produzimos nas cidades (no ambiente rural a situação é ainda mais grave) e tratamos menos de 30% disso antes de lançar aos rios esses dejetos. Ainda que esforços tenham sido feitos pelas indústrias, muito em virtude da evolução dos processos de fiscalização, em todo o Brasil ainda são notificados em grande número problemas relacionados ao descarte inadequado de efluentes industriais. E ainda há a questão dos dejetos de produção animal e agrícola, que não são de modo algum negligenciáveis.
Quanto à segunda questão, os dados da Agência Nacional de Águas – ANA e de inúmeros pesquisadores mostram que lamentavelmente em todas as regiões pode-se sim observar problemas quanto à qualidade da água. Alguns problemas como a eutrofização (crescimento de algas que afeta a viabilidade dos corpos hídricos em sustentar a vida), a contaminação por diferentes microrganismos e poluentes químicos podem ser notadas em diversas regiões, praticamente onde quer que se busque.
IHU On-Line – O que a análise microbiológica da Baía de Guanabara revela sobre a qualidade da água da Baía?
Fernando Spilki – Essa análise que conduzimos junto à agência de notícias Associated Press não revela algo desconhecido, os problemas de qualidade da água no contexto da Baía da Guanabara são descritos de longa data, mas infelizmente parece que sempre temos de avisar sobre questões que vão sendo deixadas de lado. A própria presença de vírus causadores de doenças de veiculação hídrica na Lagoa Rodrigo de Freitas e nas praias mais frequentadas tem antecedentes. A Fiocruz produziu, num passado recente, excelentes estudos sobre o mesmo tema. Aquela situação nada mais é que o resultado dessas questões de um processo de crescimento dos grandes centros urbanos não acoplados a um plano de desenvolvimento que contemplasse a questão do esgoto doméstico. São hoje em torno de 13 milhões de pessoas que vivem naquele entorno, com um sistema de tratamento de esgoto muito aquém do ideal.
Não é uma questão exclusiva do Rio de Janeiro, está em todo o Brasil, mas é emblemático, pois trata-se de um cartão postal maravilhoso do país, com um povo alegre e hospitaleiro como poucos, daí o impacto que teve esse estudo, claro que associado à questão olímpica.
O que esperamos é que toda essa polêmica gerada tenha reflexos para depois e além da Olimpíada: que se repense o manejo do esgoto doméstico naquele ambiente e que seja de fato beneficiada a população residente no Rio de Janeiro. E tomara que toda essa discussão sirva também de alerta no resto do Brasil. Outra questão relevante é de trazer à tona a questão de parâmetros e medidas mais adequados ao século XXI para monitoramento da segurança e qualidade da água.
“Esses patógenos de veiculação hídrica podem causar conjuntivites, hepatites, doenças respiratórias e mesmo doenças ainda mais graves”
IHU On-Line – Quais são as principais doenças associadas à água contaminada e como essa questão é vista em termos de saúde pública?
Fernando Spilki – Quando pensamos em doenças de veiculação hídrica, o foco está principalmente relacionado às gastroenterites (vômito e diarreia). Essas doenças são uma das principais causas de atendimento de crianças nos serviços de saúde dos países em desenvolvimento, são especialmente importantes nessa faixa etária, bem como em idosos e imunossuprimidos e, para piorar o quadro, muitas vezes os adultos saudáveis transmitem esses agentes aos corpos d’água pelos dejetos sem apresentar qualquer sintoma, o que permite a perpetuação desse ciclo onde o sistema de saneamento básico for ineficiente. Nesse âmbito, diferentes microrganismos estão envolvidos com diarreia, mas os vírus sem dúvida têm grande importância, em parte por que não são monitorados e os atuais indicadores de qualidade microbiológica da água (coliformes fecais) não são capazes de apontar sua presença. Um copo d’água livre de coliformes fecais pode conter vírus, ou mesmo outras bactérias e protozoários.
Além das gastroenterites, esses patógenos de veiculação hídrica podem causar conjuntivites, hepatites, doenças respiratórias e mesmo doenças ainda mais graves.
IHU On-Line – O que são os vírus entéricos e como se dá a proliferação e contaminação deles pela água?
Fernando Spilki – São vírus com uma característica estrutural peculiar (ausência de envelope lipídico) que os torna muito resistentes no ambiente, desse modo evoluíram para essa via de transmissão fecal-oral e por se multiplicarem nas células do trato digestivo, chamados entéricos.
Um indivíduo sadio ou doente pode excretar bilhões de partículas desses vírus em uma defecação. Sem o devido tratamento do esgoto, mesmo que uma parte desses vírus seja destruída no caminho até os corpos hídricos, sobraram milhões de partículas virais capazes de contaminar a água e causar infecções em outros indivíduos. Imagine isso replicado para milhões de pessoas em uma bacia hidrográfica.
IHU On-Line – Em que consiste sua pesquisa sobre a detecção de vírus da Hepatite E em amostras de água? Quais são as principais constatações da pesquisa até o momento?
Fernando Spilki – A hepatite E é causada por um desses vírus entéricos. É uma doença muito especial, pois expressa bem algo contemporâneo em saúde: a necessidade de entender o processo de saúde como algo único, não podemos mais dissociar em muitos casos a saúde humana, animal e ambiental. Esse vírus da hepatite E causa infecções assintomáticas em suínos, pode ser transmitido aos seres humanos pela água contaminada pelos dejetos desses animais ou mesmo alimentos de origem suína não devidamente cozidos. Em pessoas pode causar desde infecções subclínicas (sem nenhum sinal visível) até hepatites graves. É uma doença emergente em nível mundial. Na nossa Bacia dos Sinos ainda não detectamos o vírus na água, mas em outras regiões do Rio Grande do Sul, onde há maior presença de atividade suinícola, detectamos o vírus de forma muito frequente em amostras de dejetos suínos e de efluentes de suinocultura.
IHU On-Line – Uma das suas pesquisas investigou quais doenças foram possivelmente transmitidas pela água na região da Bacia Hidrográfica do Rio dos Sinos. Quais são as conclusões da pesquisa? Que doenças estão associadas à contaminação da água do Rio dos Sinos?
Fernando Spilki – Fizemos um enorme esforço de pesquisa em conjunto com a CORSAN, onde monitoramos durante 24 meses para vírus e centenas de outros parâmetros a água captada pela companhia no Sinos e afluentes para tratamento. Ao mesmo tempo acompanhamos os atendimentos notificados pelos órgãos de saúde para doenças de veiculação hídrica na nossa região. Pudemos observar que há um forte impacto da falta de tratamento adequado do esgoto na qualidade da água nessa bacia hidrográfica e que as doenças de veiculação hídrica sofrem variação ao longo do tempo conforme o ciclo hidrológico (mais ou menos chuva por exemplo), o que já foi observado em outros locais.
IHU On-Line – Quais são as principais dificuldades ou problemas dos sistemas de tratamento biológico de esgoto doméstico e água para consumo no sentido de tratar a água e torná-la potável e livre de vírus, por exemplo?
Fernando Spilki – Em primeiro lugar, antes de discutirmos a eficiência dos processos, devemos elevar de forma expressiva os índices de tratamento de esgoto instalados. Tomemos em conta que na bacia hidrográfica do Rio dos Sinos ainda convivemos com uma taxa de tratamento de esgoto doméstico ínfima, da ordem de 4,5% de tudo que é produzido. Em um segundo momento, deveremos sim lidar com a adoção de tecnologias que levem a uma efetiva degradação de microrganismos mais resistentes, tais como vírus e protozoários, pois as estações de tratamento de água e esgoto convencionais usualmente não dão conta desta tarefa. Todo o sistema atual está baseado na resistência dos coliformes fecais aos processos de desinfecção, que infelizmente é muito mais baixa que a desses patógenos emergentes. Desse modo, o que é eficaz para os coliformes pode ser inócuo para esses outros agentes. Daí a necessidade de desenvolvermos novas soluções para degradação e remoção desses agentes em esgoto e água, sem perder a noção de que há a necessidade de essas novas tecnologias terem um custo baixo e serem de adoção fácil.
“Na bacia hidrográfica do Rio dos Sinos ainda convivemos com uma taxa de tratamento de esgoto doméstico ínfima, da ordem de 4,5% de tudo que é produzido”
IHU On-Line – Por outro lado, quais são as dificuldades do sistema de saúde brasileiro no que se refere ao tratamento de doenças causadas pela água contaminada?
Fernando Spilki – Isso é de fato preocupante. Há todo um sistema de trabalho baseado na ideia de uma nova configuração da população, de seu envelhecimento e do aumento da frequência de doenças crônicas e um maior preparo dos sistemas de ensino, pesquisa e mesmo de atendimento para lidar com essas situações. Isso está sem dúvida correto, mas não podemos esquecer que não vencemos no Brasil a etapa de controlar e tratar as doenças transmissíveis. Há uma gama de doenças de veiculação hídrica (especialmente diarreias e hepatites) e de doenças indiretamente relacionadas ao manejo da água (Dengue, Chikungunya, Zika, Febre Amarela) das quais ainda não nos livramos, ou pelo contrário, que recém chegaram e já com grande impacto em saúde pública. Temos que mirar sim o futuro, mas sem esquecer que temos uma situação no Brasil que mescla doenças de uma população desenvolvida e mais idosa com outras típicas dos países em desenvolvimento.
IHU On-Line – Os padrões estipulados para a qualidade da água, pela resolução CONAMA 274 de 29 de novembro de 2000, são adequados ou precisariam ser revistos?
Fernando Spilki – Esta e outras portarias e regulamentações, incluindo a Portaria MS Nº 2914 de 2011, que versa sobre a água potável, ainda foram formuladas sob uma óptica de restrições técnicas e orçamentárias para a adoção de marcadores mais fidedignos de segurança para a saúde dos consumidores e do ambiente. Essas normativas estão mais adequadas às necessidades e capacidades instaladas de órgãos reguladores e das próprias concessionárias de produção de água e tratamento de esgoto. Não só no caso de vírus, mas também para outros microrganismos, poluentes orgânicos emergentes e outros parâmetros notavelmente importantes hoje, a adoção foi em muitos casos negligenciada, seja em virtude de custos, dificuldade na implantação de protocolos ou mesmo inabilidade ou morosidade dos sistemas de vigilância e produção em renovar suas abordagens.
Considero grande parte desse pensamento anacrônico; grande parte dessas metodologias especialmente de monitoramento teve custo muito reduzido nessa última década e há hoje muito mais pessoal treinado para execução dessas análises. Há sim que haver uma revisão constante desses parâmetros. Da parte da investigação científica, uma preocupação que devemos ter é buscar inovação no sentido de desenvolver protocolos mais simples, robustos e baratos, seja para monitoramento ou tratamento dessas novas ameaças presentes na água. Só assim lograremos um conjunto de parâmetros de qualidade da produção de água e tratamento de esgoto que esteja de fato focado nas pessoas e nos ecossistemas e não apenas nas limitações técnicas ou orçamentárias dos entes envolvidos.
Por Patricia Fachin para o portal Ecodebate
Fonte: http://www.ecodebate.com.br/2015/10/02/a-contaminacao-das-aguas-e-a-disseminacao-de-doencas-de-proliferacao-hidrica/
“As causas da contaminação da água no Brasil estão intrinsecamente ligadas a um processo de rápida e expressiva expansão dos centros urbanos, especialmente na segunda metade do século XX”, diz Fernando Spilki à IHU On-Line, em entrevista concedida por e-mail.
Segundo o pesquisador, a expansão urbana foi feita sem planejamento e os corpos d’água foram “considerados meros receptores e canais de escoamento de resíduos domésticos e industriais. Era forte a ideia (e ainda é) da máxima de que a ‘diluição é a solução’, quanto maior ou mais caudaloso um corpo hídrico, mais contaminação se poderia jogar nele. O irônico é que justamente desses mananciais é que advém a maior parte da água destinada ao consumo nas grandes cidades”, pontua.
Na entrevista a seguir, Spilki comenta que além da falta de tratamento do esgoto, as águas contaminadas são um potencial para o desenvolvimento de uma série de vírus causadores de doenças. “Há uma gama de doenças de veiculação hídrica (especialmente diarreias e hepatites) e de doenças indiretamente relacionadas ao manejo da água (Dengue, Chikungunya, Zika, Febre Amarela) das quais ainda não nos livramos, ou pelo contrário, que recém chegaram e já com grande impacto em saúde pública. Temos que mirar sim o futuro, mas sem esquecer que temos uma situação no Brasil que mescla doenças de uma população desenvolvida e mais idosa com outras típicas dos países em desenvolvimento”.
Fernando Spilki é graduado em Medicina Veterinária pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, com mestrado em Ciências Veterinárias pela UFRGS, na área de Virologia Animal, e doutorado em Genética e Biologia Molecular, área de Microbiologia, pela Universidade Estadual de Campinas. Atualmente leciona na Universidade Feevale.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Quais são as causas da contaminação das águas brasileiras? A água de todas as regiões brasileiras está contaminada?
Fernando Spilki – As causas da contaminação da água no Brasil estão intrinsecamente ligadas a um processo de rápida e expressiva expansão dos centros urbanos, especialmente na segunda metade do século XX. Essa expansão se deu de forma fragmentada, sem planejamento adequado. Justamente por isso, pela falta de planejamento, e por uma óptica que já podia ser considerada anacrônica mesmo para a época, os corpos d’água foram em muitos momentos considerados meros receptores e canais de escoamento de resíduos domésticos e industriais. Era forte a ideia (e ainda é) da máxima de que a “diluição é a solução”, quanto maior ou mais caudaloso um corpo hídrico, mais contaminação se poderia jogar nele. O irônico é que justamente desses mananciais é que advém a maior parte da água destinada ao consumo nas grandes cidades.
Outros determinantes históricos importantes foram a concepção dos militares de que governo e desenvolvimento estavam ligados a grandes obras de distribuição de água potável, sem considerar a necessária expansão na outra via de coleta e tratamento de esgoto e o foco do crescimento baseado na indústria e na revolução verde, em muitos casos a qualquer custo do ponto de vista ambiental. De alguns destes males não estamos livres até hoje, mesmo passadas décadas do processo de redemocratização. Ainda coletamos ao redor de 50% do esgoto doméstico que produzimos nas cidades (no ambiente rural a situação é ainda mais grave) e tratamos menos de 30% disso antes de lançar aos rios esses dejetos. Ainda que esforços tenham sido feitos pelas indústrias, muito em virtude da evolução dos processos de fiscalização, em todo o Brasil ainda são notificados em grande número problemas relacionados ao descarte inadequado de efluentes industriais. E ainda há a questão dos dejetos de produção animal e agrícola, que não são de modo algum negligenciáveis.
Quanto à segunda questão, os dados da Agência Nacional de Águas – ANA e de inúmeros pesquisadores mostram que lamentavelmente em todas as regiões pode-se sim observar problemas quanto à qualidade da água. Alguns problemas como a eutrofização (crescimento de algas que afeta a viabilidade dos corpos hídricos em sustentar a vida), a contaminação por diferentes microrganismos e poluentes químicos podem ser notadas em diversas regiões, praticamente onde quer que se busque.
IHU On-Line – O que a análise microbiológica da Baía de Guanabara revela sobre a qualidade da água da Baía?
Fernando Spilki – Essa análise que conduzimos junto à agência de notícias Associated Press não revela algo desconhecido, os problemas de qualidade da água no contexto da Baía da Guanabara são descritos de longa data, mas infelizmente parece que sempre temos de avisar sobre questões que vão sendo deixadas de lado. A própria presença de vírus causadores de doenças de veiculação hídrica na Lagoa Rodrigo de Freitas e nas praias mais frequentadas tem antecedentes. A Fiocruz produziu, num passado recente, excelentes estudos sobre o mesmo tema. Aquela situação nada mais é que o resultado dessas questões de um processo de crescimento dos grandes centros urbanos não acoplados a um plano de desenvolvimento que contemplasse a questão do esgoto doméstico. São hoje em torno de 13 milhões de pessoas que vivem naquele entorno, com um sistema de tratamento de esgoto muito aquém do ideal.
Não é uma questão exclusiva do Rio de Janeiro, está em todo o Brasil, mas é emblemático, pois trata-se de um cartão postal maravilhoso do país, com um povo alegre e hospitaleiro como poucos, daí o impacto que teve esse estudo, claro que associado à questão olímpica.
O que esperamos é que toda essa polêmica gerada tenha reflexos para depois e além da Olimpíada: que se repense o manejo do esgoto doméstico naquele ambiente e que seja de fato beneficiada a população residente no Rio de Janeiro. E tomara que toda essa discussão sirva também de alerta no resto do Brasil. Outra questão relevante é de trazer à tona a questão de parâmetros e medidas mais adequados ao século XXI para monitoramento da segurança e qualidade da água.
“Esses patógenos de veiculação hídrica podem causar conjuntivites, hepatites, doenças respiratórias e mesmo doenças ainda mais graves”
IHU On-Line – Quais são as principais doenças associadas à água contaminada e como essa questão é vista em termos de saúde pública?
Fernando Spilki – Quando pensamos em doenças de veiculação hídrica, o foco está principalmente relacionado às gastroenterites (vômito e diarreia). Essas doenças são uma das principais causas de atendimento de crianças nos serviços de saúde dos países em desenvolvimento, são especialmente importantes nessa faixa etária, bem como em idosos e imunossuprimidos e, para piorar o quadro, muitas vezes os adultos saudáveis transmitem esses agentes aos corpos d’água pelos dejetos sem apresentar qualquer sintoma, o que permite a perpetuação desse ciclo onde o sistema de saneamento básico for ineficiente. Nesse âmbito, diferentes microrganismos estão envolvidos com diarreia, mas os vírus sem dúvida têm grande importância, em parte por que não são monitorados e os atuais indicadores de qualidade microbiológica da água (coliformes fecais) não são capazes de apontar sua presença. Um copo d’água livre de coliformes fecais pode conter vírus, ou mesmo outras bactérias e protozoários.
Além das gastroenterites, esses patógenos de veiculação hídrica podem causar conjuntivites, hepatites, doenças respiratórias e mesmo doenças ainda mais graves.
IHU On-Line – O que são os vírus entéricos e como se dá a proliferação e contaminação deles pela água?
Fernando Spilki – São vírus com uma característica estrutural peculiar (ausência de envelope lipídico) que os torna muito resistentes no ambiente, desse modo evoluíram para essa via de transmissão fecal-oral e por se multiplicarem nas células do trato digestivo, chamados entéricos.
Um indivíduo sadio ou doente pode excretar bilhões de partículas desses vírus em uma defecação. Sem o devido tratamento do esgoto, mesmo que uma parte desses vírus seja destruída no caminho até os corpos hídricos, sobraram milhões de partículas virais capazes de contaminar a água e causar infecções em outros indivíduos. Imagine isso replicado para milhões de pessoas em uma bacia hidrográfica.
IHU On-Line – Em que consiste sua pesquisa sobre a detecção de vírus da Hepatite E em amostras de água? Quais são as principais constatações da pesquisa até o momento?
Fernando Spilki – A hepatite E é causada por um desses vírus entéricos. É uma doença muito especial, pois expressa bem algo contemporâneo em saúde: a necessidade de entender o processo de saúde como algo único, não podemos mais dissociar em muitos casos a saúde humana, animal e ambiental. Esse vírus da hepatite E causa infecções assintomáticas em suínos, pode ser transmitido aos seres humanos pela água contaminada pelos dejetos desses animais ou mesmo alimentos de origem suína não devidamente cozidos. Em pessoas pode causar desde infecções subclínicas (sem nenhum sinal visível) até hepatites graves. É uma doença emergente em nível mundial. Na nossa Bacia dos Sinos ainda não detectamos o vírus na água, mas em outras regiões do Rio Grande do Sul, onde há maior presença de atividade suinícola, detectamos o vírus de forma muito frequente em amostras de dejetos suínos e de efluentes de suinocultura.
IHU On-Line – Uma das suas pesquisas investigou quais doenças foram possivelmente transmitidas pela água na região da Bacia Hidrográfica do Rio dos Sinos. Quais são as conclusões da pesquisa? Que doenças estão associadas à contaminação da água do Rio dos Sinos?
Fernando Spilki – Fizemos um enorme esforço de pesquisa em conjunto com a CORSAN, onde monitoramos durante 24 meses para vírus e centenas de outros parâmetros a água captada pela companhia no Sinos e afluentes para tratamento. Ao mesmo tempo acompanhamos os atendimentos notificados pelos órgãos de saúde para doenças de veiculação hídrica na nossa região. Pudemos observar que há um forte impacto da falta de tratamento adequado do esgoto na qualidade da água nessa bacia hidrográfica e que as doenças de veiculação hídrica sofrem variação ao longo do tempo conforme o ciclo hidrológico (mais ou menos chuva por exemplo), o que já foi observado em outros locais.
IHU On-Line – Quais são as principais dificuldades ou problemas dos sistemas de tratamento biológico de esgoto doméstico e água para consumo no sentido de tratar a água e torná-la potável e livre de vírus, por exemplo?
Fernando Spilki – Em primeiro lugar, antes de discutirmos a eficiência dos processos, devemos elevar de forma expressiva os índices de tratamento de esgoto instalados. Tomemos em conta que na bacia hidrográfica do Rio dos Sinos ainda convivemos com uma taxa de tratamento de esgoto doméstico ínfima, da ordem de 4,5% de tudo que é produzido. Em um segundo momento, deveremos sim lidar com a adoção de tecnologias que levem a uma efetiva degradação de microrganismos mais resistentes, tais como vírus e protozoários, pois as estações de tratamento de água e esgoto convencionais usualmente não dão conta desta tarefa. Todo o sistema atual está baseado na resistência dos coliformes fecais aos processos de desinfecção, que infelizmente é muito mais baixa que a desses patógenos emergentes. Desse modo, o que é eficaz para os coliformes pode ser inócuo para esses outros agentes. Daí a necessidade de desenvolvermos novas soluções para degradação e remoção desses agentes em esgoto e água, sem perder a noção de que há a necessidade de essas novas tecnologias terem um custo baixo e serem de adoção fácil.
“Na bacia hidrográfica do Rio dos Sinos ainda convivemos com uma taxa de tratamento de esgoto doméstico ínfima, da ordem de 4,5% de tudo que é produzido”
IHU On-Line – Por outro lado, quais são as dificuldades do sistema de saúde brasileiro no que se refere ao tratamento de doenças causadas pela água contaminada?
Fernando Spilki – Isso é de fato preocupante. Há todo um sistema de trabalho baseado na ideia de uma nova configuração da população, de seu envelhecimento e do aumento da frequência de doenças crônicas e um maior preparo dos sistemas de ensino, pesquisa e mesmo de atendimento para lidar com essas situações. Isso está sem dúvida correto, mas não podemos esquecer que não vencemos no Brasil a etapa de controlar e tratar as doenças transmissíveis. Há uma gama de doenças de veiculação hídrica (especialmente diarreias e hepatites) e de doenças indiretamente relacionadas ao manejo da água (Dengue, Chikungunya, Zika, Febre Amarela) das quais ainda não nos livramos, ou pelo contrário, que recém chegaram e já com grande impacto em saúde pública. Temos que mirar sim o futuro, mas sem esquecer que temos uma situação no Brasil que mescla doenças de uma população desenvolvida e mais idosa com outras típicas dos países em desenvolvimento.
IHU On-Line – Os padrões estipulados para a qualidade da água, pela resolução CONAMA 274 de 29 de novembro de 2000, são adequados ou precisariam ser revistos?
Fernando Spilki – Esta e outras portarias e regulamentações, incluindo a Portaria MS Nº 2914 de 2011, que versa sobre a água potável, ainda foram formuladas sob uma óptica de restrições técnicas e orçamentárias para a adoção de marcadores mais fidedignos de segurança para a saúde dos consumidores e do ambiente. Essas normativas estão mais adequadas às necessidades e capacidades instaladas de órgãos reguladores e das próprias concessionárias de produção de água e tratamento de esgoto. Não só no caso de vírus, mas também para outros microrganismos, poluentes orgânicos emergentes e outros parâmetros notavelmente importantes hoje, a adoção foi em muitos casos negligenciada, seja em virtude de custos, dificuldade na implantação de protocolos ou mesmo inabilidade ou morosidade dos sistemas de vigilância e produção em renovar suas abordagens.
Considero grande parte desse pensamento anacrônico; grande parte dessas metodologias especialmente de monitoramento teve custo muito reduzido nessa última década e há hoje muito mais pessoal treinado para execução dessas análises. Há sim que haver uma revisão constante desses parâmetros. Da parte da investigação científica, uma preocupação que devemos ter é buscar inovação no sentido de desenvolver protocolos mais simples, robustos e baratos, seja para monitoramento ou tratamento dessas novas ameaças presentes na água. Só assim lograremos um conjunto de parâmetros de qualidade da produção de água e tratamento de esgoto que esteja de fato focado nas pessoas e nos ecossistemas e não apenas nas limitações técnicas ou orçamentárias dos entes envolvidos.
Por Patricia Fachin para o portal Ecodebate
Fonte: http://www.ecodebate.com.br/2015/10/02/a-contaminacao-das-aguas-e-a-disseminacao-de-doencas-de-proliferacao-hidrica/
Postado por
Dr. Frederico Lobo
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Intoxicação por agrotóxico: ‘Os números são suficientemente alarmantes’. Entrevista com Larissa Mies Bombardi
“Em 2005 o consumo médio de agrotóxicos era da ordem de 5 kg/hectare e, em 2011, passou a ser de 11 kg/hectare. Ou seja, em menos de uma década dobramos a quantidade de agrotóxicos utilizada no país”, informa a pesquisadora.
Em sete anos, 2.181 casos de crianças e adolescentes intoxicados por agrotóxicos foram notificados junto ao Ministério da Saúde, informa Larissa Mies Bombardi, em entrevista concedida à IHU On-Line por e-mail. Segundo a pesquisadora, que analisou esses dados em sua pesquisa de pós-doutorado, “nos estados do Centro-Sul do país, as crianças entre 1 e 4 anos respondem por mais de 30% dos casos. Em Mato Grosso e Minas Gerais, por exemplo, esta faixa etária (de 1 a 4 anos) responde por mais de 40% dos casos de intoxicação neste intervalo de 0 a 14 anos”.
Larissa conta que desde que iniciou suas investigações sobre os impactos do uso de agrotóxicos no país, tem percebido que “de 20 a 25% das intoxicações notificadas, ano após ano, diziam respeito a crianças e jovens, com idade de 0 a 19 anos”. Do total das intoxicações analisadas por ela, grande parte, explica, refere-se a “motivos acidentais (primeiro lugar no tipo de circunstância que envolveu a intoxicação para a faixa etária de 0 a 14 anos).
Entretanto, um dado muito assustador é que o segundo motivo no número de intoxicações notificadas para a faixa etária mencionada é o de suicídio, que se concentra entre adolescentes de 10 a 14 anos. Neste período, mais de 300 adolescentes entre 10 e 14 anos fizeram tentativa de suicídio através da ingestão de agrotóxicos de uso agrícola”. Para ela, esses dados demonstram que “estamos diante de uma forma de violência silenciosa ou de uma epidemia silenciosa provocada pelo modelo agrícola que o país vem adotando”.
Na entrevista a seguir, Larissa comenta os efeitos das intoxicações por agrotóxicos entre adultos e crianças e esclarece, especificamente, as implicações do Ingrediente Ativo Acefato, o quinto em número de vendas no Brasil.
Larissa Mies Bombardi é graduada em Geografia pela Universidade de São Paulo – USP, onde também cursou o mestrado e o doutorado. Atualmente é professora no Departamento de Geografia da USP.
IHU On-Line – Em que consiste seu estudo, o qual evidenciou que entre 2007 e 2014 foram notificadas 2.150 intoxicações somente na faixa etária entre 0 e 14 anos de idade, em todo o país?
Larissa Mies Bombardi – Este estudo refere-se ao desenvolvimento de meu Pós-Doutorado, que tem por temática a questão do uso de agrotóxicos no Brasil e seus impactos.
Durante o desenvolvimento dos mapeamentos que venho fazendo, passou a me chamar a atenção a quantidade de intoxicações entre crianças e jovens. Praticamente de 20 a 25% das intoxicações notificadas, ano após ano, diziam respeito a crianças e jovens, com idade de 0 a 19 anos. Assim, fui focando os mapas em faixas etárias ainda inferiores e pude constatar que neste período (2007 a 2014) houve 2.181 crianças e adolescentes com intoxicações notificadas junto ao Ministério da Saúde, com idade entre 0 e 14 anos. E, destas, nos estados do Centro-Sul do país, as crianças entre 1 e 4 anos respondem por mais de 30% dos casos. Em Mato Grosso e Minas Gerais, por exemplo, esta faixa etária (de 1 a 4 anos) responde por mais de 40% dos casos de intoxicação neste intervalo de 0 a 14 anos.
IHU On-Line – Esses casos de intoxicação ocorreram e ocorrem com mais frequência por quais razões? Pelo consumo de alimentos contaminados, por ingestão de agrotóxicos acidentalmente, pelo contato das crianças com as plantações? As intoxicações foram mais frequentes em crianças que residem no campo ou na cidade?
Larissa Mies Bombardi – Deste total, uma grande parte das intoxicações notificadas referem-se a motivos acidentais (primeiro lugar no tipo de circunstância que envolveu a intoxicação para a faixa etária de 0 a 14 anos). Entretanto, um dado muito assustador é que o segundo motivo no número de intoxicações notificadas para a faixa etária mencionada é o de suicídio, que se concentra entre adolescentes de 10 a 14 anos. Neste período, mais de 300 adolescentes entre 10 e 14 anos fizeram tentativa de suicídio através da ingestão de agrotóxicos de uso agrícola.
Outra informação importante é que a maior parte das crianças e adolescentes intoxicados tem a zona urbana como residência. Este fato, sem dúvida, está relacionado à enorme subnotificação dos casos de intoxicações por agrotóxico de uso agrícola.
Se atentarmos para os tipos de circunstância e focarmos naquela denominada pelo Ministério da Saúde como “acidental”, verificaremos que esta tem prevalência na zona urbana em relação à rural, o que leva à hipótese de que as crianças intoxicadas na zona rural estão envolvidas no universo do trabalho diretamente ou não, ou seja, pode ser que a própria criança trabalhe efetivamente ou que acompanhe os pais em suas jornadas de trabalho.
Outro dado alarmante refere-se à intoxicação através da ingestão de alimentos. No total, neste período, foram 54 crianças intoxicadas por agrotóxico de uso agrícola através do consumo de alimentos, dentre elas três bebês de menos de um ano. Com relação à zona de residência, 32 deste total habitam a zona urbana e 22 a zona rural.
Este número nos dá uma média de quatro crianças intoxicadas com agrotóxico de uso agrícola por ano através do consumo de alimentos. Penso que estes dados traduzem a gravidade da questão do uso de agrotóxicos no país.
“Estes dados traduzem a gravidade da questão do uso de agrotóxicos no país”
IHU On-Line – Como analisa esse dado de mais de 2.150 intoxicações registradas entre crianças dessa faixa etária? Que efeitos essas intoxicações causam nas crianças?
Larissa Mies Bombardi – Os efeitos de intoxicações por agrotóxicos sobre crianças são sempre mais nefastos do que sobre os adultos, por dois motivos básicos:
1. As crianças são organismos em crescimento e em formação;
2. O peso corpóreo das crianças é menor do que o dos adultos, o que significa que a mesma quantidade de ingrediente ativo da intoxicação (ingerido, inalado, ou por contato etc.) pode ter seu efeito ampliado.
Como exemplo, vale indicar a Nota Técnica da Anvisa sobre o Ingrediente Ativo “Acefato”, o quinto em número de vendas no Brasil, em seu processo de avaliação:
“Outro quadro neurológico grave, desencadeado por exposições aos OPs (Organo-fosforados, que é o caso do Acefato), foi identificado mais recentemente, e passou a ser conhecido como ‘síndrome intermediária’. A Síndrome Intermediária – SI caracteriza-se pela acentuada fraqueza dos músculos respiratórios e diminuição da força dos músculos do pescoço e das extremidades proximais dos membros. Esses sintomas aparecem algumas horas após o início dos sintomas de hiperestimulação colinérgica (intoxicação aguda). O comprometimento respiratório na SI, se não houver pronto atendimento em hospitais equipados com aparelhos de respiração assistida, pode levar à morte. (…) Outra questão preocupante é o fato de estudos experimentais sugerirem que crianças (organismos ainda em desenvolvimento) possam ser mais vulneráveis aos efeitos de OPs. Há indícios claros de que a exposição contínua de animais em fase de desenvolvimento a baixas doses de OPs pode afetar adversamente o crescimento e a maturação.”
Entretanto, em que pese o teor da avaliação deste Ingrediente Ativo, Acefato, em Diário Oficial da União de 04/10/2013, verifica-se que a decisão foi por manter a autorização do Acefato nas culturas de amendoim, algodão, batata, brócolis, citros, couve, couve-flor, feijão, melão, repolho, soja e tomate para fins industriais, com a diferença que, a partir de então, este ingrediente ativo passou a ser exclusivamente de aplicação por meio de equipamentos mecanizados.
IHU On-Line – Outro dado demonstra que ocorrem em média 5.600 intoxicações por ano. Como interpreta esse dado?
Larissa Mies Bombardi – Estes números já revelam um quadro gravíssimo. Cheguei a eles a partir do banco de dados da Fiocruz, mapeando as intoxicações durante um período de 11 anos (1999 a 2009). Considerando este número de intoxicações notificadas, 5.600 por ano, significa que tivemos 62.000 intoxicações no período, ou 15 intoxicações por dia, ou uma a cada 90 minutos.
Estes números por si só já são suficientemente alarmantes, entretanto a própria Fiocruz estima que, para cada intoxicação notificada, tenhamos 50 outras não notificadas.
Isto significa que estamos diante de uma forma de violência silenciosa ou de uma epidemia silenciosa provocada pelomodelo agrícola que o país vem adotando.
IHU On-Line – Por quais razões as notificações de intoxicação por agrotóxicos ainda são pouco notificadas no serviço de saúde?
Larissa Mies Bombardi – Por algumas razões, dentre elas, destacam-se: acesso distante e difícil dos camponeses e trabalhadores rurais em relação aos centros de saúde, falta de preparo dos profissionais de saúde para lidar com os quadros de intoxicação por agrotóxico e, também, uma prática da população em não buscar o serviço de saúde em quadros de intoxicação “leve”, mas que, no entanto, levam a problemas crônicos de saúde — tal prática é perpetrada por mensagens subliminares que fazem supor a baixa toxicidade dos agrotóxicos.
“A agricultura agroecológica, por exemplo, pode ser tão ou mais produtiva que a agricultura convencional”
IHU On-Line – Como se dá a intoxicação por agrotóxico no uso agrícola? Quais são os casos mais recorrentes que tem registrado em suas pesquisas?
Larissa Mies Bombardi – Segundo a classificação da Anvisa sobre as circunstâncias que levaram às intoxicações notificadas para o período de 2007 a 2014, o maior número de notificações está relacionado à tentativa de suicídio, em segundo lugar a fatos acidentais, em terceiro lugar ao uso habitual e, em quarto lugar, a intoxicações ambientais.
Estes dados são gerais, para o país todo, com especificidades regionais e estaduais. Entretanto, a tentativa de suicídio ocupa mais de 40% do total das intoxicações notificadas. Só no ano de 2013 foram 1.796 tentativas de suicídio com agrotóxicos de uso agrícola notificadas. Isto significa que, a cada dia, praticamente cinco pessoas no país tentaram suicídio com ingestão de agrotóxicos.
O entendimento da envergadura destes números nos leva a pelo menos duas explicações: a primeira é que o número de subnotificações em geral é tão grande, que estes casos de tentativa de suicídio (devido à gravidade e toda a questão formal/jurídica que eles envolvem) tomam uma proporção gigantesca no universo de notificações. A segunda é que há uma conexão clara (em estudos realizados no Brasil e no exterior) entre a exposição crônica a alguns tipos de agrotóxicos e neuropatias decorrentes desta exposição, que podem levar o camponês ou o trabalhador rural à tentativa de suicídio.
De toda forma, observa-se, pelo restante dos dados mencionados anteriormente (excetuando-se o número de tentativas de suicídio), que a questão laboral está no centro das intoxicações por agrotóxicos de uso agrícola.
IHU On-Line – Quais são os casos mais problemáticos do uso de agrotóxicos na agricultura?
Larissa Mies Bombardi – Entendo que o que há de muito problemático é o fato de termos um modelo agrícola que privilegia a exportação e a produção de agrocombustíveis, em detrimento de um projeto de soberania alimentar. Desta forma, vamos acompanhando ano após ano a diminuição da produção de arroz e feijão, por exemplo, que respectivamente ocupavam 3,2 e 4,3 milhões de hectares em 2002 e passaram a ocupar 2,8 e 3,7 milhões de hectares em 2011. Por outro lado, vemos um aumento vertiginoso da produção de grãos (particularmente milho e soja) e cana-de-açúcar. A soja partiu de 16,4 milhões de hectares em 2002 para 22,7 milhões de hectares em 2011, e a cana, neste mesmo período, de 5,2 milhões de hectares para 11 milhões de hectares.
Se observarmos o uso de agrotóxicos por cultivo (valores referentes às vendas de agrotóxicos), podemos verificar que em 2009 a soja ocupava o primeiro lugar com 47%, o milho em segundo lugar com 11,4% e a cana em terceiro lugar com 8,2%.
Deve-se ressaltar ainda que, com a liberação das sementes transgênicas OGMs (Organismos Geneticamente Modificados), que em boa parte dos casos trata-se de sementes tolerantes ao Glifosato (o Ingrediente Ativo mais vendido no Brasil), vivenciamos um aumento muito significativo do uso de agrotóxicos. Em 2005 o consumo médio de agrotóxicos era da ordem de 5 kg/hectare e, em 2011, passou a ser de 11 kg/hectare. Ou seja, em menos de uma década dobramos a quantidade de agrotóxicos utilizada no país.
“Estamos diante de dois modelos que ‘aparentemente’ dizem respeito à produção de alimentos: um deles em que realmente se trata de produção de alimentos, e outro em que se trata da produção de commodities e energia”
IHU On-Line – É possível desenvolver uma agricultura sem o uso de agrotóxicos? Quais as vantagens e desvantagens desse tipo de agricultura?
Larissa Mies Bombardi – Sim, é perfeitamente possível desenvolver agricultura sem o uso de agrotóxicos, afinal, a humanidade chegou até os anos 50 do século passado sem este tipo de uso. A justificativa para o uso massivo de agrotóxicos na agricultura, desde o final da II Guerra Mundial, tem sido de que esta é a resposta para o problema da fome no mundo: a produtividade resolverá a fome. Entretanto, passado mais de meio século, um terço da humanidade permanece na miséria, muito embora a produção de alimentos tenha aumentado exponencialmente. O problema da fome é uma questão de acesso à terra e distribuição de renda, como já apontara Josué de Castro na década de 60 do século passado. O que está em questão, portanto, é aquilo em que o alimento se tornou. O alimento tem se tornado uma mercadoria como outra qualquer para ser comercializada nas Bolsas de Mercadorias e Futuros e, também, tem se transformado em energia.
A agricultura agroecológica, por exemplo, pode ser tão ou mais produtiva que a agricultura convencional. Entretanto, esta demanda bastante trabalho humano, em virtude de um manejo frequente que está relacionado à adaptação dos cultivos aos aspectos da natureza, entre outros fatores, além de envolver o bem-estar dos camponeses que a praticam. O fato de este tipo de agricultura demandar intenso trabalho humano torna-a inviável do ponto de vista de um empreendimento capitalista, ou seja, aquele que se mantém através da exploração do trabalho assalariado.
Assim, estamos diante de dois modelos que “aparentemente” dizem respeito à produção de alimentos: um deles em que realmente se trata de produção de alimentos, e outro em que se trata da produção de commodities e energia.
Por Patricia Fachin para o Portal Ecodebate
Fonte: http://www.ecodebate.com.br/2015/09/28/intoxicacao-por-agrotoxico-os-numeros-sao-suficientemente-alarmantes-entrevista-com-larissa-mies-bombardi/
Postado por
Dr. Frederico Lobo
às
23:37
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