sábado, 30 de março de 2024

Vitamina B3 e aumento do risco cardiovascular

Um estudo recente que relaciona um derivado da niacina a maior risco de eventos cardiovasculares levantou questões sobre a segurança dessa vitamina B, que é acrescentada a muitos alimentos básicos da alimentação ocidental e consumida na forma de suplementos.

Os achados, publicados no periódico Nature Medicine, também podem ajudar a explicar por que o uso da niacina — que reduz a lipoproteína de baixa densidade do colesterol (LDL) e aumenta a lipoproteína de alta densidade do colesterol (HDL) — não levou a redução dos eventos cardiovasculares em grandes ensaios clínicos.

Mas será que esse micronutriente essencial pode realmente ter um efeito adverso no risco cardiovascular? E quais são as consequência do seu consumo?

Médico e autor sênior do novo estudo, o Dr. Stanley Hazen, acredita que haja motivos para evitar a ingestão excessiva de niacina.

"Não estou sugerindo que devamos evitar completamente a niacina. Trata-se de um nutriente essencial, mas nossos resultados sugerem que seu excesso pode ser prejudicial", disse.

Os suplementos de niacina também são vendidos com a propaganda de supostos efeitos antienvelhecimento, alívio da artrite e melhora da função cerebral, embora nenhuma dessas alegações tenha sido comprovada. E a substância relacionada, a nicotinamida, é recomendada para prevenir o câncer de pele em pacientes de alto risco; no entanto, um estudo recente questionou essa orientação.

"Eu diria ao público que evitar suplementos que contenham niacina ou substâncias relacionadas pode ser uma atitude sensata neste momento, enquanto essas descobertas são investigadas mais a fundo."

Outros especialistas ainda não sabem se essa ação é justificada pelos resultados de um único estudo.

Risco cardiovascular residual

O Dr. Stanley, que também é presidente do Department of Cardiovascular & Metabolic Sciences da Cleveland Clinic, nos Estados Unidos, explicou ao Medscape que sua intenção inicial não era estudar a niacina.

"Tudo começou como um estudo para procurar novas vias envolvidas no risco residual de doenças cardiovasculares, ou seja, o risco de eventos cardiovasculares após o ajuste dos fatores de risco tradicionais, como colesterol, pressão arterial e diabetes mellitus."

Os pesquisadores começaram a procurar substâncias no plasma que indicassem futuros eventos cardiovasculares adversos nos pacientes em avaliação cardíaca diagnóstica eletiva. Dois dos principais candidatos identificados foram os derivados da niacina — 2PY e 4PY —, formados somente quando há excesso desse micronutriente.

Em seguida, os cientistas criaram ensaios para dosar 2PY e 4PY e fizeram outros estudos em duas coortes de validação, uma com 2.331 indivíduos dos EUA e outra com 832 participantes na Europa. Em ambas as coortes, altos níveis plasmáticos de 2PY e 4PY predisseram futuros eventos cardiovasculares adversos, com a duplicação do risco cardiovascular observado nas pessoas com níveis no quartil mais alto em comparação às do quartil mais baixo.

Para ir além desses estudos observacionais e explorar uma relação potencialmente causal, a equipe do Dr. Stanley realizou estudos de associação de todo o genoma e descobriu que as variantes genéticas que acompanhavam os níveis mais altos de 4PY também estavam ligadas aos níveis do marcador inflamatório, a molécula 1 de adesão às células vasculares (VCAM-1).

Na cultura de células e nos estudos em modelo animal, os pesquisadores descobriram que o 4PY era um deflagrador de inflamação, aumentando a regulação da VCAM-1 e provocando respostas de inflamação vascular.

"Portanto, mostramos de várias maneiras diferentes que o derivado da niacina, 4PY, está associado ao aumento do risco cardiovascular", comentou o Dr. Stanley.

Quais as consequências?

O Dr. Stanley acredita que essas descobertas possam ter implicações significativas para a saúde.

O pesquisador observou que as populações ocidentais têm consumido grandes quantidades de niacina desde a Segunda Guerra Mundial, quando começamos a fortificar muitos alimentos com vitaminas essenciais a fim de evitar doenças causadas por deficiências de vitaminas. A niacina foi acrescentada aos alimentos para prevenir pelagra, doença caracterizada por inflamação da pele, diarreia e demência, cujo curso era muitas vezes fatal.

"Eliminamos a pelagra, mas será que, como consequência, aumentamos a prevalência de doenças cardiovasculares muitos anos depois?", indagou o pesquisador.

Isso pode ser um indício do motivo pelo qual a niacina não diminui o risco cardiovascular tanto quanto seria esperado, em função do grau de redução do colesterol que ela proporciona. "Esse é o paradoxo da niacina e levou à ideia de que ela poderia causar algum efeito adverso. Acho que encontramos algo que talvez contribua para esclarecer essa contradição", disse o Dr. Stanley.

Entretanto, a via da niacina é complicada. A substância é a principal fonte de binucleotídeo de nicotinamida e adenina (NAD), molécula integral essencial para a produção de energia nas células. "Por ser tão importante, nosso corpo foi projetado para recuperar e reter os NAD, mas, quando a capacidade de armazenamento é excedida, esses derivados 4PY e 2PY são gerados", explicou o cientista. "Mas é preciso comer muitos alimentos ricos em niacina para que isso aconteça."

O pesquisador não está afirmando que a niacina causa doenças cardiovasculares. "É o 4PY que parece ser o indutor da inflamação vascular. Ele é um produto da degradação da niacina, mas há mais de uma via que pode levar à geração de 4PY. Há toda uma rede interconectada de compostos que se intercambiam entre si, conhecida como reserva da niacina. Qualquer um ou mais desses compostos pode ser ingerido e aumentar os níveis da reserva e, consequentemente, os níveis de 4PY. Entretanto, a niacina é de longe uma das principais fontes", comentou Dr. Stanley.

A alimentação hiperproteica também tem sua parcela de culpa?

Entre outras fontes de NAD, temos o triptofano, presente nas proteínas. E uma das variantes genéticas ligadas às mudanças dos níveis de 4PY está relacionada com a forma como a proteína alimentar é direcionada para a reserva de niacina, levantando a possibilidade de que uma alimentação hiperproteica também aumente o risco cardiovascular em algumas pessoas, observou Dr. Stanley.

Ele estimou que cerca de 3% da reserva de niacina em uma alimentação normal provém da ingestão de proteínas, mas que o percentual pode aumentar significativamente nas dietas hiperproteicas.

"Nossos dados corroboram a ideia de que, se diminuirmos nosso nível de 4PY em longo prazo, isso resultará na redução da incidência de doença cardiovascular. Mas isso ainda é apenas uma hipótese. Sabemos apenas que, se reduzirmos a ingestão de niacina, reduziremos o 4PY", afirmou Dr. Stanley.

O pesquisador disse que o estudo está em um estágio muito preliminar para gerar recomendações com fundamentação científica para o consumidor.

"Por nossas descobertas, eu orientaria as pessoas a evitar o uso de suplementos de niacina, ácido nicotínico ou nicotinamida, e a adotar uma alimentação equilibrada e sensata, talvez sem exagerar nas dietas hiperproteicas. Isso é tudo o que podemos dizer no momento."

Observando que a niacina também pode ser um dos principais componentes das bebidas energéticas, ele sugeriu que pode ser prudente limitar o consumo desses produtos.

Qual é a ingestão ideal?

Dr. Stanley observou que a dose alimentar diária recomendada para a niacina é bem conhecida — entre 14 e 18 mg —, mas que o estadunidense médio consome quatro vezes essa quantidade, e algumas pessoas têm ingestões significativamente mais altas, que chegam a até 50 vezes a recomendação diária, se estiverem tomando suplementos.

Embora o enriquecimento de alimentos com niacina possa ter sido útil no passado, o Dr. Stanley questionou se ainda deveria ser obrigatória.


"Nos EUA, não se pode comprar farinha, cereais ou arroz que não sejam enriquecidos [com essa substância]. E, se observarmos com atenção, alguns produtos têm níveis muito mais altos do que os recomendados. As empresas alimentícias anunciam isso como um benefício, mas não há dados confiáveis que comprovem essa afirmação. E se várias décadas de ingestão de niacina em excesso tiverem levado ao aumento das doenças cardiovasculares?"

O pesquisador não preconiza o fim do enriquecimento com niacina, "mas talvez pudéssemos ter a alternativa de escolher uma opção sem esse nutriente", disse.

Relação de causalidade não comprovada

Comentando para o Medscape, o Dr. John Guyton, médico e professor emérito de medicina no Duke University Medical Center, nos EUA, que participa da pesquisa sobre niacina há muitos anos, disse que o estudo publicado no periódico Nature Medicine mostrou "resultados interessantes e importantes", mas que até agora não provam uma relação de causalidade entre a ingestão de niacina e o risco de doença cardiovascular.

"Essas descobertas precisam ser investigadas mais a fundo, e mais estudos são certamente indicados, mas não acho que esse estudo, por si só, seja um argumento adequado para restringir a ingestão de niacina ou pensar em interromper o enriquecimento de alimentos com a substância", disse Dr. John.

Observando que a niacina está presente em abundância em muitos alimentos ultraprocessados, o comentarista sugeriu que os pesquisadores podem ter apenas percebido as consequências de uma alimentação pouco saudável.

"Se observarmos os alimentos que contêm grandes quantidades de niacina, a carne vermelha está no topo da lista. E se pensarmos em um hambúrguer, a niacina está presente em quantidades relativamente grandes tanto na carne quanto no pão. Portanto, essas descobertas podem ser apenas um reflexo de uma alimentação pouco saudável em geral", comentou.

Dr. John também destacou que os principais ensaios clínicos com niacina apresentaram resultados heterogêneos, e seu efeito sobre o risco cardiovascular ainda não é totalmente compreendido. Embora os ensaios clínicos HPS2-THRIVE e AIM-HIGH não tenham demostrado seus benefícios na redução de eventos cardiovasculares, um estudo anterior, o Coronary Drug Project, no qual a niacina foi administrada com alimentos, teve alguns efeitos positivos. Esta pesquisa mostrou reduções substanciais do infarto do miocárdio e do acidente vascular cerebral, e sugeriu uma redução da mortalidade em longo prazo no grupo da niacina vários anos após o término do estudo.

Nicotinamida na prevenção do câncer de pele

E quanto ao uso da nicotinamida na prevenção do câncer de pele?

Ao abordar essa questão, a Dra. Kristin Bibee, médica e professora assistente de dermatologia na Johns Hopkins University School of Medicine, nos EUA, indicou que a nicotinamida, embora intimamente relacionada com a niacina, pode ter efeitos diferentes. "Este estudo não aborda especificamente a suplementação de nicotinamida e os níveis de 4PY", disse a professora.

A Dra. Diona Damian, médica e professora de dermatologia na University of Sydney, na Austrália, disse ao Medscape que é difícil extrapolar essas descobertas sobre os níveis iniciais de niacina em uma coorte de pacientes com cardiopatia para recomendações sobre a administração de doses suprafisiológicas de nicotinamida usadas para a prevenção do câncer de pele.


Pode haver efeitos diferentes da complementação de niacina em comparação à nicotinamida, que não tem os efeitos vasodilatadores observados com a niacina, disse Dra. Diona. Ela acrescentou que seria interessante ver os resultados de doses terapêuticas mais altas de nicotinamida em pacientes com e sem doença cardíaca.

A médica destacou que os níveis baixos e altos de suplementação de nicotinamida podem ter efeitos diferentes e até mesmo opostos nos processos celulares, como a modulação positiva ou a inibição das enzimas de reparo do DNA. Em altas doses, a nicotinamida é anti-inflamatória na pele.

A Dr. Diona observou que dois estudos de fase 3 (ONTRAC e ONTRANS) com 500 mg de nicotinamida duas vezes ao dia para a prevenção do câncer de pele não encontraram aumento significativo dos eventos cardiovasculares em comparação ao placebo ao longo de 12 meses.

"Foi demonstrado que a nicotinamida oral reduz a incidência de câncer de pele — exceto o melanoma — em cerca de um quarto em pacientes com imunidade normal e vários tipos de câncer de pele. As doses usadas para a prevenção do câncer de pele estão bem acima dos níveis diários da alimentação, e o tratamento precisa ser contínuo para que os efeitos protetores se mantenham. A nicotinamida não deve ser recomendada como agente preventivo para pessoas que não tiveram diversos tipos de câncer de pele, mas deve ser reservada para quem tem alta carga desses tumores", comentou.

"Por enquanto, seria razoável equilibrar os benefícios da redução do câncer de pele com os possíveis efeitos sobre os marcadores inflamatórios em pacientes com fatores de risco cardíaco, ao auxiliar os pacientes a decidir se o tratamento com nicotinamida é ou não apropriada para eles", acrescentou.

Ao mesmo tempo, Dr. Stanley disse que a parte mais empolgante dessa nova pesquisa é a descoberta de uma nova via que contribui para a doença cardiovascular e, possivelmente, um novo alvo para tratar o risco cardiovascular residual.

"Nossos resultados mostram que devemos medir os níveis de 4PY e que as pessoas com altos níveis precisam ser mais vigilantes para reduzir o risco cardiovascular."

A próxima etapa será confirmar esses resultados em outras populações e, em seguida, criar um teste diagnóstico para identificar pessoas com 4PY alto, disse o pesquisador.


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