Mostrando postagens com marcador dormir pouco engorda. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador dormir pouco engorda. Mostrar todas as postagens

domingo, 24 de agosto de 2025

Privação de Sono e Transtornos Alimentares: A Relação Oculta Entre Insônia, Depressão e Compulsão Alimentar

Introdução

A privação de sono é cada vez mais comum em nossa sociedade moderna. Muitas pessoas acreditam que dormir pouco causa apenas cansaço no dia seguinte, mas os impactos são muito maiores e éisso que ao longo dos últimos 20 anos temos visto a ciência evidenciando. A Medicina do sono vem frisando que  que noites maldormidas podem alterar hormônios, afetar o humor e até estimular comportamentos alimentares desregulados. Além de elevar a pressão arterial, alterar a glicemia e ser gatilho para transtornos neurológicos. Ou seja, o sono é um pilar para a nossa saúde. 

Quando falamos de saúde mental, a relação entre sono e alimentação ganha ainda mais destaque. Estudos recentes identificaram que a insônia inicial e os despertares noturnos estão fortemente associados à depressão em pessoas com compulsão alimentar (TCA ou Binge eating Disorder - BED). Isso significa que cuidar do sono é tão importante quanto cuidar da alimentação.

Prevalência Global de TCA (Binge Eating Disorder)

Uma meta-análise global estimou uma prevalência média de 0,9% (IC 95%: 0,7–1,0%) para o BED no mundo. As mulheres têm maior incidência (1,4%, IC 1,1–1,7%) em comparação aos homens (0,4%, IC 0,3–0,6%) e não houve diferença significativa entre países de alta renda e de baixa/média renda. Estudos apontam que, em mulheres jovens, a prevalência de transtornos alimentares (incluindo BED) varia de 5,5% a 17,9%, e entre homens jovens, de 0,6% a 2,4% 

Prevalência na América Latina (inclusive Brasil)

Uma revisão sistemática na América Latina encontrou uma prevalência média pontual de 3,53% para o BED na população geral.

O impacto da privação de sono no corpo

Dormir pouco desregula o metabolismo de várias formas. Quando o corpo não descansa, a produção de cortisol, hormônio do estresse, aumenta. Isso estimula o acúmulo de gordura abdominal e prejudica a regulação da glicose. Além disso, a privação de sono está ligada ao aumento da resistência à insulina, facilitando o surgimento de diabetes tipo 2.

Outro fator é a alteração dos hormônios da fome e saciedade. A grelina, que aumenta o apetite, sobe quando dormimos mal. Já a leptina, responsável pela sensação de saciedade, cai drasticamente. O resultado é um desejo maior por alimentos calóricos, como doces e fast food.

Essa combinação cria um terreno fértil para a compulsão alimentar e para o ganho de peso. Pessoas que sofrem com insônia tendem a comer mais durante a noite e buscam alimentos de alto valor calórico. Assim, o sono ruim pode ser um grande inimigo da manutenção de um peso saudável.

A compulsão alimentar e seus riscos

A compulsão alimentar é caracterizada por episódios recorrentes em que a pessoa consome grandes quantidades de comida em pouco tempo, acompanhados de sensação de perda de controle. Esses episódios são diferentes de um simples exagero: há sofrimento emocional e culpa após as crises.

Esse transtorno é um dos mais comuns entre os distúrbios alimentares e afeta homens e mulheres em todas as idades. Muitas vezes, ele está associado à obesidade e a dificuldades em manter hábitos alimentares equilibrados. Mas o que nem todos sabem é que ele também está fortemente relacionado à saúde mental.

Pesquisas mostram que pessoas com compulsão alimentar apresentam taxas mais altas de depressão e ansiedade. E agora sabemos que o sono tem papel essencial nessa ligação, funcionando como um fio invisível que conecta alimentação e emoções.

O elo entre insônia e depressão

Um estudo internacional analisou pacientes com compulsão alimentar e encontrou resultados muito interessantes. 

O objetivo central do estudo foi investigar, em pacientes com transtorno de compulsão alimentar (TCA/BED), como diferentes componentes do comer noturno (hiperfagia vepertina e ingestões noturnas = Síndrome do comer noturno) e distúrbios do sono (insônia inicial e despertares) se associam à depressão. A hipótese era que o sono, mais do que o padrão alimentar noturno em si, poderia explicar a carga depressiva nesses pacientes.

Trata-se de um estudo observacional transversal com 153 adultos diagnosticados com TCA, atendidos em um programa clínico de tratamento e recuperação para compulsão alimentar nos EUA, no período de 2020 a 2023. A média etária foi de aproximadamente 36 anos, variando de 18 a 62 anos.

O desfecho primário avaliado foi a depressão, medida pelo Patient Health Questionnaire-9 (PHQ-9), instrumento validado e amplamente utilizado em estudos psiquiátricos para triagem e avaliação da gravidade da depressão.

A psicopatologia alimentar global foi mensurada por meio do Eating Disorder Examination Questionnaire (EDE-Q), utilizado como variável de ajuste para o modelo, assegurando que o impacto observado fosse de fato relacionado ao sono, e não apenas à gravidade do transtorno alimentar. Para caracterizar a síndrome do comer noturno, os pesquisadores aplicaram o Night Eating Questionnaire (NEQ). Foram diferenciados dois fenômenos: hiperfagia vespertina (ingestão de mais de 25% das calorias diárias após o jantar) e ingestões noturnas (alimentação após despertares durante a noite).

Os distúrbios de sono analisados incluíram insônia inicial (dificuldade para pegar no sono) e despertares noturnos (sono fragmentado), sendo essas variáveis introduzidas como potenciais preditores independentes de depressão.

A análise estatística foi feita por regressão linear hierárquica. No primeiro nível, controlou-se a gravidade global do transtorno alimentar (EDE-Q). Em seguida, introduziram-se variáveis de comer noturno. Por fim, acrescentaram-se as variáveis de sono para verificar se explicavam variância adicional nos sintomas depressivos.

Na análise bivariada, tanto insônia inicial, quanto despertares noturnos e hiperfagia vespertina se associaram à depressão. As ingestões noturnas não mostraram correlação significativa com o humor deprimido.

No modelo final ajustado, apenas insônia inicial (p<0,01) e despertares noturnos (p<0,05) permaneceram significativamente associados à depressão. A hiperfagia vespertina perdeu significância quando as variáveis de sono foram introduzidas, e as ingestões noturnas seguiram sem associação.

Isso sugere que, em pacientes com TCA, é o sono interrompido e não necessariamente os comportamentos alimentares noturnos o fator mais relevante na determinação de sintomas depressivos.

Descritivamente, 41% dos participantes relataram hiperfagia vespertina. Cerca de 49% relataram acordar ao menos uma vez por semana durante a noite, e entre estes, 42% afirmaram não se alimentar nesses episódios. Esses números ilustram a alta prevalência de sono fragmentado nessa população clínica.

Outro achado relevante foi a associação entre insônia inicial e ideação suicida. Além disso, observou-se correlação negativa com idade, sugerindo que pacientes mais jovens apresentam risco aumentado de pensamentos suicidas quando associados a distúrbios de sono.

Esses dados reforçam a necessidade de considerar o sono como parte essencial da avaliação psiquiátrica e nutricional em pacientes com TCA, pois, pode representar um alvo terapêutico de igual ou até maior importância que o manejo alimentar noturno.

Os autores reconhecem a limitação do desenho transversal, que não permite inferir causalidade. Ainda assim, os modelos hierárquicos ajustados fortalecem a hipótese de que distúrbios do sono exercem um papel independente sobre a depressão.

Outras limitações incluem o uso exclusivo de medidas de autorrelato, o foco em mulheres brancas e em indivíduos tratados em clínicas de maior complexidade, o que pode reduzir a generalização dos resultados. A ausência de controle para a frequência e intensidade das crises de compulsão também foi apontada.

Apesar disso, o estudo apresenta forças metodológicas importantes: amostra clínica de porte razoável, uso de instrumentos validados e análise estatística robusta, capaz de discriminar o papel incremental das variáveis de sono.

Do ponto de vista clínico, recomenda-se que pacientes com TCA e sintomas depressivos sejam rotineiramente avaliados quanto a insônia inicial e despertares noturnos. Intervenções baseadas em terapia cognitivo-comportamental para insônia (TCC-I), higiene do sono e ajustes no estilo de vida podem ser incorporadas ao tratamento padrão.

Fica a sugestão de que pesquisas futuras utilizem desenhos longitudinais e incorporem medidas objetivas de sono (como actigrafia ou polissonografia) para confirmar os achados e elucidar se a melhora do sono tem impacto causal na redução da depressão em TCAP.

O estudo ainda aponta que a abordagem clínica deve ir além da alimentação. Focar exclusivamente no comportamento alimentar noturno pode negligenciar um componente crucial do quadro: o sono fragmentado.

Em conclusão, a evidência sugere que insônia inicial e despertares noturnos são fatores independentes associados à depressão em pacientes com compulsão alimentar periódica, ao passo que hiperfagia vespertina e ingestões noturnas isoladamente não aumentam o risco quando se ajusta para o sono. Assim, estratégias de tratamento devem obrigatoriamente incluir avaliação e manejo de distúrbios do sono.

Curiosamente, o simples fato de comer durante a noite não teve a mesma força na relação com a depressão. Isso significa que, para muitos pacientes, é o sono ruim que aumenta o risco de sintomas depressivos, e não apenas a compulsão alimentar.

Essa descoberta reforça a importância de olhar para o sono com mais atenção no tratamento de transtornos alimentares. Muitas vezes, melhorar a qualidade do descanso pode ser um passo essencial para reduzir a depressão e o sofrimento emocional.

Comer à noite: vilão ou consequência?

Muitas pessoas acreditam que comer durante a noite é sempre prejudicial. Mas a ciência mostra que o problema não está apenas no horário, e sim na qualidade do sono que antecede ou acompanha esses episódios.

Quando a pessoa acorda várias vezes durante a noite, há maior chance de buscar alimentos calóricos como forma de compensação. Isso é chamado de comer emocional, um comportamento usado para lidar com a ansiedade ou o estresse.

No entanto, quando a análise é ajustada para os distúrbios do sono, percebe-se que o risco de depressão está mais ligado à insônia do que ao ato de comer à noite em si. Isso muda a forma de enxergar o tratamento desses pacientes.

Distúrbios do sono relacionados à alimentação

Além da insônia, existem distúrbios específicos que ligam sono e alimentação. A síndrome do comer noturno é um deles. Nesse quadro, a pessoa consome mais de 25% das calorias do dia após o jantar. Esse padrão está associado à obesidade e maior risco metabólico.

Outro distúrbio é o transtorno alimentar relacionado ao sono, no qual a pessoa come durante episódios de sonambulismo e não se lembra depois. Apesar de menos comum, esse problema também gera impacto metabólico e psicológico.

Todos esses distúrbios exigem avaliação profissional para diagnóstico correto. Nem sempre a queixa é apenas sobre a comida — muitas vezes, o sono é a raiz do problema.

O papel da ansiedade na privação de sono

A ansiedade é um dos fatores que mais interferem na qualidade do sono. Pessoas ansiosas costumam demorar mais para adormecer, acordam durante a noite e apresentam sono fragmentado. Esse quadro é chamado de insônia inicial e intermediária.

Quando isso se repete com frequência, a privação de sono aumenta ainda mais a ansiedade, criando um ciclo difícil de quebrar. Para aliviar esse desconforto, muitos recorrem à comida, reforçando o padrão de compulsão alimentar.

Esse comportamento é comum e pode ser identificado como uma forma de fuga emocional. Ao compreender essa relação, é possível pensar em estratégias terapêuticas mais eficazes, que tratem a ansiedade e melhorem a higiene do sono ao mesmo tempo.

Sono, obesidade e metabolismo

Dormir pouco não afeta apenas a saúde mental. O metabolismo também sofre de forma significativa. Estudos mostram que a privação de sono aumenta a resistência à insulina, dificultando o controle do açúcar no sangue e elevando o risco de diabetes tipo 2.

Além disso, há maior tendência ao ganho de peso, pois o corpo busca energia extra em alimentos de alta densidade calórica. Isso ajuda a explicar por que a obesidade está tão associada a padrões de sono ruins.

Para pacientes com compulsão alimentar, o sono ruim é um agravante poderoso. Isso reforça que dormir bem é uma das estratégias mais simples e eficazes para regular o metabolismo e manter o peso sob controle.

Estratégias para melhorar o sono

A boa notícia é que existem medidas práticas para melhorar a qualidade do sono. Uma delas é manter horários regulares para deitar e acordar, ajudando o corpo a entrar em ritmo circadiano adequado. Elaborei um texto e publiquei aqui no blog, medidas de higiene de sono, que talvez possam te auxiliar: https://www.ecologiamedica.net/2012/02/metodos-de-higiene-do-sono-o-que.html

Reduzir o uso de telas antes de dormir também faz grande diferença. A luz azul emitida por celulares e computadores atrapalha a produção de melatonina, o hormônio do sono. Criar um ambiente escuro e silencioso favorece o adormecer.

Outras estratégias incluem evitar cafeína à noite, praticar exercícios físicos regularmente e adotar técnicas de relaxamento, como respiração profunda e meditação.

Conclusão

A relação entre privação de sono, compulsão alimentar e depressão é clara. Não se trata apenas de comer em horários inadequados, mas de compreender como o sono influencia diretamente os hormônios, o humor e o comportamento alimentar.

Pessoas com insônia apresentam maior risco de desenvolver compulsão alimentar, depressão e até ideação suicida. Por isso, o tratamento deve ir além da alimentação e incluir uma avaliação detalhada da qualidade do sono.

Cuidar do descanso é uma forma de cuidar da mente e do corpo. Investir em noites bem dormidas pode ser tão importante quanto adotar uma dieta equilibrada. Afinal, sono de qualidade é parte essencial da saúde integral.

Fontes: 
Autor: Dr. Frederico Lobo - Médico Nutrólogo - CRM-GO 13192 - RQE 11915