Diretrizes da Organização Mundial de Saúde (OMS) sobre Uso de análogos de GLP-1 para tratamento da obesidade em adultos
O entusiasmo global em torno dos análogos de GLP-1 (classe farmacológica desenvolvida para diabetes/obesidade), como a liraglutida, semaglutida e a tirzepatida, para a perda de peso é inegável. Em meio a esse cenário, a Organização Mundial da Saúde (OMS) acaba de lançar sua primeira diretriz sobre o uso desses medicamentos no tratamento da obesidade em adultos.
Mas o que a principal autoridade de saúde do mundo realmente pensa sobre esses medicamentos que viraram febre? A resposta é muito mais complexa e cautelosa do que se imagina. A diretriz revela insights que desafiam a narrativa simplista da "solução mágica" e que todos precisam entender. E isso é histórico. Pela primeira vez a OMS tem um posicionamento tão claro sobre o tema. Vamos destrinchar a diretriz.
Por que a OMS fez uma diretriz sobre esses remédios?
Com a primeira diretriz da OMS, a ideia não é lançar “remédios da moda”, mas organizar o que a ciência já sabe e orientar países, profissionais de saúde e pessoas que vivem com obesidade sobre quando, como e para quem essas medicações podem fazer sentido.
A diretriz foi construída com revisões sistemáticas de estudos clínicos, análise de segurança, custo, impacto nos sistemas de saúde e, algo importante, ouvindo também pessoas que vivem com obesidade.
O documento reforça desde o início: não se trata de uma solução isolada, mas de uma peça dentro de um modelo de cuidado crônico, de longo prazo, e centrado na pessoa.
Obesidade hoje: a grandiosidade do problema que enfrentamos
Segundo a OMS, mais de 1 bilhão de pessoas no mundo vivem com obesidade, e esse número cresce em praticamente todos os países. Em 2021, estimou-se que a obesidade contribuiu para 3,7 milhões de mortes relacionadas a doenças crônicas como diabetes tipo 2, hipertensão, infarto e alguns tipos de câncer.
O impacto financeiro também é enorme: projeta-se um custo global em torno de 3 trilhões de dólares por ano até 2030, considerando internações, medicamentos, cirurgias e perda de produtividade. Esses dados ajudam a entender por que a OMS decidiu olhar com mais atenção para terapias farmacológicas: se a obesidade é uma doença crônica com tamanho impacto, faz sentido perguntar que lugar os medicamentos podem ocupar dentro de uma estratégia mais ampla de cuidado.
Obesidade não é “falta de vergonha na cara” ou "falha no caráter"
A diretriz reforça algo que, honestamente, já passou da hora de virar senso comum: obesidade não é sinônimo de preguiça ou falta de força de vontade. É definida como uma doença crônica, complexa, progressiva e muitas vezes recorrente, marcada por acúmulo excessivo de gordura que compromete a saúde. Fatores biológicos, genéticos, psicológicos, sociais, ambientais e até alguns medicamentos entram nesse caldeirão, e não apenas “comer demais”.
Para adultos, a OMS mantém a definição de obesidade como IMC igual ou maior que 30 kg/m², mas lembra que o IMC é só um marcador indireto, não um retrato perfeito do corpo e da saúde de cada indivíduo. A mensagem central é: tratar obesidade exige abordagem respeitosa, sem estigma, e organizada como cuidado de longo prazo.
O que são as terapias com análogos de GLP-1 e GIP/GLP-1?
Os medicamentos discutidos na diretriz já abordei dezenas de vezes aqui no blog. Mas resumindo: eles imitam hormônios do nosso próprio corpo, principalmente o GLP-1 e, em alguns casos, combinam GLP-1 com GIP. Esses hormônios participam do controle da glicose e do apetite: aumentam a liberação de insulina quando o açúcar no sangue sobe, diminuem a liberação de glucagon, retardam o esvaziamento gástrico e atuam no cérebro reduzindo a fome.
Na prática, a pessoa tende a sentir menos apetite, comer menos e, ao longo do tempo, perder peso. A diretriz avalia especificamente três fármacos: liraglutida (injeção diária), semaglutida (injeção semanal ou comprimido diário) e tirzepatida (injeção semanal, combinando GIP e GLP-1).
Todos foram inicialmente desenvolvidos para diabetes tipo 2, mas os estudos em obesidade mostraram reduções de peso clinicamente relevantes.
Para quem esses medicamentos são indicados, segundo a OMS?
A recomendação da OMS é *condicional* e direcionada a adultos com obesidade, ou seja, pessoas com 19 anos ou mais e IMC igual ou maior que 30 kg/m².
A diretriz deixa claro que a recomendação não abrange, por enquanto, quem tem IMC entre 27 e 30 kg/m² mesmo com doenças associadas, pois as evidências foram avaliadas com foco em quem já está na faixa de obesidade.
Esses medicamentos “podem ser usados” como tratamento de longo prazo (pelo menos 6 meses, muitas vezes anos) dentro de programas estruturados de cuidado crônico, não como uso pontual ou esporádico. Eles devem ser considerados após avaliação clínica, discussão de riscos, benefícios, custo e preferências da pessoa, e não como saída automática para qualquer pessoa com excesso de peso.
O que a diretriz mostra sobre resultados e benefícios?
Nos estudos analisados, pessoas com obesidade que usaram agonistas de GLP-1 ou GIP/GLP-1 perderam, em média, algo entre 5% e 16% do peso corporal, dependendo do medicamento, da dose e da duração do tratamento.
A semaglutida, em especial, mostrou reduções de peso consideradas moderadas a grandes, enquanto liraglutida e tirzepatida também apresentaram benefício relevante. Além do peso, a diretriz avaliou qualidade de vida, eventos cardiovasculares graves e mortalidade.
Até o momento, os dados sugerem melhora de alguns marcadores de saúde cardiometabólica e sinais promissores em desfechos cardiovasculares, mas com diferentes níveis de certeza e ainda precisando de mais tempo de acompanhamento. A OMS classifica a evidência global como de certeza moderada, o que é razoável, mas longe de “certeza absoluta”.
Efeitos colaterais, segurança e pontos em aberto
A diretriz deixa claro que não existe tratamento sem risco. Os efeitos colaterais mais comuns dos agonistas de GLP-1 são gastrointestinais: náuseas, vômitos, diarreia, constipação e desconforto abdominal, especialmente no início ou quando a dose aumenta. Na maior parte das vezes são leves a moderados, mas podem ser intensos para algumas pessoas.
A OMS cita ainda efeitos menos frequentes, porém mais preocupantes, como doença da vesícula biliar, pancreatite, gastroparesia e obstrução intestinal, que ainda estão sendo melhor estudados.
Há discussão em torno de risco de alguns tipos de câncer de tireoide e um possível aumento de casos de neuropatia óptica isquêmica (um problema raro nos nervos dos olhos), mas as evidências são discordantes.
Outro ponto frágil: ainda sabemos pouco sobre o que acontece a longo prazo quando o medicamento é interrompido, qual o melhor jeito de reduzir a dose ou se há esquemas de “manutenção” mais seguros e eficazes. Aqui vai um adendo (que não está na diretriz mas foi publicado na ultima semana).
O estudo SURMOUNT-4 mostrou que parar tirzepatida depois de grande perda de peso leva a reganho importante de peso e perda de boa parte dos benefícios metabólicos, enquanto manter o uso mantém e até aumenta a perda de peso.
Em números:
- Todos os participantes usaram tirzepatida por 36 semanas e perderam em média 20,9% do peso corporal.
- Depois disso, foram randomizados para continuar tirzepatida ou trocar para placebo (ou seja, suspender a medicação). Ao longo do ano seguinte (semanas 36 a 88):
- Quem continuou tirzepatida perdeu mais 5,5% em média.
- Quem parou (placebo) recuperou cerca de 14% do peso, em média.
No fim do estudo, 89,5% dos que seguiram com tirzepatida mantinham ≥80% da perda de peso inicial, contra apenas 16,6% no grupo que parou o remédio.
Análises posteriores do mesmo estudo mostraram que, entre os que pararam tirzepatida, a maioria recuperou 25% ou mais do peso que havia perdido, e esse reganho veio acompanhado de reversão proporcional dos ganhos cardiometabólicos: piora de circunferência de cintura, pressão arterial, colesterol não-HDL, glicemia, insulina e resistência insulínica.
Relatos de mídia científica e leiga citam que algo em torno de 80% dos participantes que suspenderam o medicamento entraram nessa faixa de reganho ≥25% da perda inicial.
Em termos de mensagem clínica, o SURMOUNT-4 reforça a ideia de que obesidade é doença crônica e que esses fármacos (aqui, tirzepatida – agonista GIP/GLP-1, “primo” dos análogos de GLP-1) funcionam enquanto usados. Quando você tira a intervenção farmacológica, o organismo tende a voltar ao seu “set point” anterior, com retorno parcial do peso e dos riscos cardiometabólicos, mesmo mantendo orientações de estilo de vida.
Mudança de estilo de vida continua sendo pilar do tratamento
Um ponto forte da diretriz é que ela não coloca remédio no lugar de mudança de estilo de vida, e sim junto dela. A OMS emite um “bom enunciado de prática”: toda pessoa com obesidade deve receber aconselhamento adequado sobre alimentação saudável e atividade física, mesmo que nunca venha a usar medicamento.
Para quem usa GLP-1 ou GIP/GLP-1, a recomendação é associar o remédio a terapia comportamental intensiva, com metas claras, acompanhamento frequente e apoio para mudanças sustentáveis no dia a dia.
A OMS reforça princípios básicos de uma alimentação saudável: ser adequada em nutrientes, equilibrada em energia e em fontes (carboidratos, proteínas, gorduras), moderada em itens que fazem mal em excesso e variada, com diferentes alimentos in natura ou minimamente processados.
Para emagrecer com segurança, reduzir calorias faz parte do jogo, mas isso deve ser feito com supervisão, especialmente em quem já usa medicação.
Outras opções e o modelo de cuidado crônico em obesidade
A diretriz lembra que os agonistas de GLP-1 não são a única opção de tratamento nem substituem estratégias já consagradas como mudança de estilo de vida bem estruturada e cirurgia bariátrica em casos selecionados.
Em muitos contextos, a base ainda será dieta, atividade física, suporte psicológico e manejo das doenças associadas, com ou sem medicamento. Em situações específicas, a cirurgia bariátrica segue sendo um recurso importante, principalmente para pessoas com obesidade grave e alto risco de complicações.
O que a OMS propõe é um “modelo multimodal de cuidado crônico”: diferentes ferramentas (comportamentais, farmacológicas, cirúrgicas, suporte social) combinadas de forma personalizada, com acompanhamento contínuo, revisão periódica do plano e foco não só na balança, mas também em pressão, glicemia, qualidade de vida, mobilidade, saúde mental e participação social.
Acesso, equidade e decisões compartilhadas
Por fim, a diretriz assume um elefante na sala: esses medicamentos são caros e não estão igualmente disponíveis em todos os países ou sistemas de saúde. Infelizmente !
A OMS alerta que, se a incorporação de GLP-1 não for planejada com cuidado, há risco real de aumentar desigualdades, beneficiando apenas quem já tem maior poder aquisitivo ou vive em grandes centros.
Os países são orientados a discutir custo-efetividade, priorizar quem está em maior risco de adoecer ou morrer por obesidade e pensar em financiamento público quando possível, sem desviar recursos de outras áreas essenciais.
Para a pessoa que vive com obesidade, a mensagem central é: remédio pode ser uma ferramenta importante, mas a decisão precisa ser compartilhada com um profissional de saúde, levando em conta expectativas, riscos, benefícios, custos e alternativas. Não existe solução mágica nem abordagem única que sirva para todo mundo; existe cuidado contínuo, informação de qualidade e respeito à história e às escolhas de cada um.
Artigo: Celletti F, Farrar J, De Regil L. World Health Organization Guideline on the Use and Indications of Glucagon-Like Peptide-1 Therapies for the Treatment of Obesity in Adults. JAMA. Published online December 01, 2025. doi:10.1001/jama.2025.24288
Disponível em: https://jamanetwork.com/journals/jama/fullarticle/2842199
Autor: Dr. Frederico Lobo - Médico Nutrólogo - CRM-GO 13192 - RQE 11915 - Gostou do texto e quer conhecer mais sobre minha pratica clínica, clique aqui.
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