[Conteúdo técnico para médicos] - Diretrizes Brasileiras para o Tratamento Farmacológico da Obesidade (ABESO, 2026)

 


1.0 Introdução e Metodologia da Diretriz

A "Diretriz Brasileira de Tratamento Farmacológico da Obesidade - ABESO 2026" representa um marco fundamental para a prática clínica no Brasil, consolidando as mais atuais evidências científicas para orientar profissionais de saúde na abordagem de uma das mais prevalentes condições crônicas da atualidade. Este relatório técnico sintetiza suas principais recomendações, oferecendo um guia claro e objetivo para a implementação de um tratamento seguro, eficaz e individualizado.

O processo de elaboração da diretriz foi pautado por um rigor metodológico exemplar. Um painel multidisciplinar, composto por 22 endocrinologistas, um nutricionista especialista em metabologia e quatro clínicos gerais, foi responsável pelo desenvolvimento do conteúdo. De forma inovadora e essencial, o painel incluiu uma representante de pacientes que vivem com obesidade, garantindo que as recomendações finais estivessem alinhadas aos valores, preferências e realidades da população-alvo.

As etapas de desenvolvimento foram estruturadas para garantir transparência e consenso. O escopo foi definido em 13 de março de 2024, seguido por três reuniões da comissão executiva para alinhamento estratégico. Em 18 de maio de 2025, o painel de votação se reuniu presencialmente para elaborar as recomendações. Para refinar e validar o documento, a versão final foi submetida a duas rodadas de revisão integral por todos os 27 membros, utilizando o método Delphi para assegurar um consenso estruturado, transparente e livre de vieses dominantes.

A independência editorial do documento foi um pilar central de sua criação. Todas as decisões metodológicas e científicas foram tomadas exclusivamente pelo painel elaborador, sem qualquer interferência de patrocinadores. Os potenciais conflitos de interesse de todos os autores foram declarados de maneira estruturada e avaliados de forma transparente, reforçando a credibilidade e a integridade das recomendações.

Para aplicar corretamente as orientações contidas neste documento, é imprescindível compreender a classificação utilizada para avaliar a força de cada recomendação e a qualidade da evidência que a suporta.

2.0 Sistema de Classificação das Recomendações

A diretriz adota um sistema de classificação padronizado e internacionalmente reconhecido para graduar tanto a força das recomendações quanto a qualidade da evidência científica que as fundamenta. A metodologia é baseada nos critérios da European Society of Cardiology (ESC), o que permite uma interpretação clara e uniforme do peso de cada orientação clínica, facilitando a tomada de decisão baseada em evidências.

Tabela 1: Classes de Recomendação

Classe

Definição

Formulação recomendada

Classe I

Evidência e/ou consenso geral de que determinado tratamento ou procedimento é benéfico, útil, efetivo.

É recomendada ou indicada

Classe IIa

Evidência conflitante e/ou divergência de opinião sobre a utilidade/eficácia do tratamento ou procedimento.

Deve ser considerada

Classe IIb

A utilidade/eficácia está menos bem estabelecida pela evidência/opinião.

Pode ser considerada

Classe III

Evidência ou consenso geral de que o tratamento ou procedimento não é útil/efetivo, e em alguns casos pode ser prejudicial.

Não é recomendada

Tabela 2: Níveis de Evidência

Nível de Evidência

Origem dos Dados

Nível A

Dados provenientes de múltiplos ensaios clínicos randomizados ou metanálises.

Nível B

Dados provenientes de um único ensaio clínico randomizado ou de grandes estudos não randomizados.

Nível C

Consenso de opinião de especialistas e/ou estudos pequenos, retrospectivos ou registros.

A compreensão dessas classificações é essencial para a aplicação criteriosa das diretrizes clínicas, permitindo que o profissional de saúde pondere a robustez de cada recomendação no contexto individual de cada paciente.

3.0 Princípios Fundamentais e Estratégias Terapêuticas

O tratamento da obesidade exige uma abordagem multifacetada, na qual a farmacoterapia atua como uma ferramenta poderosa, mas não isolada. Esta diretriz estrutura a farmacoterapia moderna em três pilares fundamentais: a indispensável Abordagem Integrada com o estilo de vida, os rigorosos Critérios de Iniciação e Objetivos do Tratamento, e a estratégica Seleção de Fármacos e Estratégia de Longo Prazo.

Abordagem Integrada

A base de qualquer tratamento eficaz para a obesidade é a combinação de intervenções comportamentais com a terapia farmacológica. As recomendações a seguir estabelecem essa fundação:

  1. Sinergia Terapêutica: O tratamento farmacológico deve ser implementado concomitantemente a intervenções de Mudança de Estilo de Vida (MEV), pois essa abordagem combinada potencializa a perda de peso e a melhora de marcadores cardiometabólicos. (Classe I, Nível de Evidência A)
  2. Aconselhamento Nutricional: É indispensável o aconselhamento nutricional para estabelecer um padrão alimentar que promova a saúde cardiometabólica e previna deficiências nutricionais em longo prazo. (Classe I, Nível de Evidência B)
  3. Atividade Física: Os pacientes devem ser orientados a reduzir o sedentarismo e a praticar atividade física regularmente, com base em sua condição clínica e preferências pessoais. (Classe I, Nível de Evidência B)

Critérios de Iniciação e Objetivos do Tratamento

A decisão de iniciar a farmacoterapia deve ser baseada em critérios clínicos bem definidos, com metas terapêuticas que transcendem a simples redução de peso.

  • Critérios de IMC: Recomenda-se o tratamento farmacológico para indivíduos com Índice de Massa Corporal (IMC) ≥ 30 kg/m² ou com IMC ≥ 27 kg/m² associado a complicações relacionadas à adiposidade, sempre em conjunto com intervenções no estilo de vida. (Classe I, Nível de Evidência A)
  • Métricas Adicionais: Em indivíduos com aumento da circunferência da cintura ou da relação cintura/altura e complicações, o tratamento farmacológico pode ser considerado, independentemente do valor do IMC. (Classe IIb, Nível de Evidência C)
  • Objetivos Clínicos: O tratamento visa múltiplos desfechos, incluindo a melhora ou remissão de comorbidades, a redução do risco cardiometabólico, o aumento da qualidade de vida e da funcionalidade, e a redução da gordura corporal. (Classe I, Nível de Evidência A)
  • Metas de Perda Ponderal: Para a maioria dos pacientes, deve-se considerar uma meta de perda de peso de 10% ou mais, ponderando sempre os potenciais riscos e benefícios dessa intervenção. (Classe IIa, Nível de Evidência B)

Seleção de Fármacos e Estratégia de Longo Prazo

A escolha do medicamento e a estratégia de manutenção são cruciais para o sucesso contínuo do tratamento.

  • Avaliação da Resposta: O conceito de "peso máximo atingido na vida" (PMAV) pode ser considerado como um parâmetro adicional para avaliar a resposta ao tratamento, contextualizando a perda de peso alcançada. (Classe IIb, Nível de Evidência C)
  • Priorização de Fármacos de Alta Potência: Sempre que possível, deve-se considerar o uso de fármacos de alta potência, que demonstram maior impacto em desfechos clínicos e qualidade de vida. (Classe IIa, Nível de Evidência C)
  • Critérios para Seleção Terapêutica: A escolha terapêutica, especialmente quando fármacos de alta potência não são viáveis, deve ser guiada por um conjunto abrangente de critérios, incluindo: comorbidades, doenças associadas, segurança, tolerabilidade, comodidade posológica, custo, contraindicações e padrões de comportamento alimentar do paciente. (Classe IIb, Nível de Evidência C)
  • Terapia Combinada e Manutenção: Em casos de resposta clínica insuficiente a uma monoterapia, a combinação de medicamentos pode ser considerada. (Classe IIb, Nível de Evidência C). O tratamento farmacológico é recomendado para a manutenção do peso perdido em longo prazo, com reavaliações periódicas de sua eficácia e segurança. (Classe I, Nível de Evidência A)

Após estabelecer estes princípios gerais, o relatório detalha as recomendações para cenários clínicos específicos, onde a presença de comorbidades guia a personalização da terapia.

4.0 Recomendações para Cenários Clínicos Específicos

A personalização do tratamento é um dos pilares da abordagem moderna da obesidade. Esta seção detalha as recomendações da diretriz para cenários clínicos específicos, orientando a escolha terapêutica com base nas comorbidades e nas características individuais do paciente. Estas recomendações refletem uma mudança de paradigma, movendo o foco do tratamento para além da perda de peso como desfecho primário e direcionando-o para os benefícios específicos em órgãos-alvo e na mitigação das complicações associadas à obesidade.

Doenças Cardiovasculares e Renais

  • Doença Cardiovascular Aterosclerótica: Em indivíduos com IMC ≥ 27 kg/m² e doença cardiovascular aterosclerótica (DCVA) estabelecida, mesmo sem diabetes, recomenda-se o tratamento com semaglutida para redução de eventos cardiovasculares (Classe I, Nível B). Caso seu uso não seja viável, pode-se considerar liraglutida ou tirzepatida como alternativas (Classe IIb, Nível C). O uso de sibutramina é contraindicado neste cenário (Classe III, Nível B).
  • Insuficiência Cardíaca: Para pacientes com obesidade e insuficiência cardíaca com fração de ejeção preservada (ICFEP), com ou sem diabetes mellitus tipo 2, recomenda-se o tratamento com semaglutida ou tirzepatida para alívio de sintomas, redução de peso e melhora da qualidade de vida (Classe I, Nível B).
  • Doença Renal Crônica: Em pacientes com IMC ≥ 27 kg/m² e DCVA estabelecida, sem diabetes, pode-se considerar o uso de semaglutida para reduzir a progressão da doença renal crônica (Classe IIb, Nível C).

Distúrbios Metabólicos

  • Pré-Diabetes: Recomenda-se o tratamento farmacológico, em conjunto com mudanças de estilo de vida, para indivíduos com obesidade e pré-diabetes, com o objetivo de prevenir ou retardar a progressão para diabetes tipo 2 e reduzir o risco cardiometabólico (Classe I, Nível A).
  • Doença Hepática Gordurosa: Em pacientes com doença hepática esteatótica associada à disfunção metabólica (MASLD), recomenda-se o tratamento farmacológico visando a perda de peso (Classe I, Nível B). Especificamente para aqueles com esteatohepatite associada à disfunção metabólica (MASH) e fibrose, recomenda-se o uso de semaglutida para a redução e/ou resolução da esteatose, da MASH e da fibrose (Classe I, Nível B).

Condições Musculoesqueléticas e Respiratórias

  • Osteoartrite de Joelho: Para indivíduos com IMC ≥ 30 kg/m² e osteoartrite de joelho, deve-se considerar o uso de semaglutida para melhora dos sintomas articulares e da qualidade de vida (Classe IIa, Nível B). Se a semaglutida não for uma opção, pode-se considerar outros agentes com o objetivo de alcançar perdas de peso superiores a 10% (Classe IIb, Nível C).
  • Apneia Obstrutiva do Sono: A perda de peso é a estratégia terapêutica central recomendada para pacientes com apneia obstrutiva do sono (AOS) moderada a grave, visando a melhora dos episódios de apneia/hipopneia (Classe I, Nível A). Para alcançar este objetivo, deve-se considerar o tratamento com tirzepatida para a redução da gravidade ou remissão da AOS (Classe IIa, Nível B). O uso de liraglutida também pode ser considerado para a redução da gravidade do quadro (Classe IIb, Nível B).

Populações Especiais

  • Idosos e Obesidade Sarcopênica: Recomenda-se que todos os indivíduos com mais de 60 anos ou com risco de sarcopenia sejam avaliados para essa condição antes de iniciar o tratamento farmacológico (Classe I, Nível C). Nestas populações, o tratamento deve ser considerado em conjunto com treinamento de força e aporte proteico adequado para minimizar a perda de massa muscular e manter a capacidade funcional (Classe IIa, Nível B).
  • Câncer Relacionado à Obesidade (ORC): O tratamento farmacológico pode ser considerado em pacientes com ORC, desde que a decisão seja tomada em comum acordo com a equipe de oncologia, visando a melhora da resposta ao tratamento oncológico, da qualidade de vida e de redução do risco de complicações (Classe IIb, Nível B).
  • Hipogonadismo em Homens: Deve-se considerar a farmacoterapia em homens com hipogonadismo relacionado à obesidade com o objetivo de melhorar os níveis de testosterona (Classe IIa, Nível B).

A seguir, serão abordadas as considerações finais sobre a prática segura e baseada em evidências, fundamentais para a responsabilidade clínica.

5.0 Considerações Finais sobre a Prática Clínica

A responsabilidade do profissional de saúde transcende a simples prescrição, exigindo uma adesão estrita a práticas seguras e cientificamente embasadas. As recomendações finais da diretriz reforçam os limites éticos e técnicos da farmacoterapia para a obesidade, visando proteger o paciente e garantir a integridade do tratamento.

Prescrição Baseada em Evidências e Uso Off-Label

  • Não se recomenda o uso de medicamentos que não possuam evidências de eficácia e segurança demonstradas em ensaios clínicos randomizados (ECRs) ou metanálises de ECRs para o tratamento da obesidade. Esta recomendação visa coibir práticas sem embasamento científico robusto. (Classe III, Nível de Evidência C)
  • O uso off-label de medicamentos pode ser considerado apenas na impossibilidade de se utilizar tratamentos formalmente aprovados para obesidade, e desde que a eficácia e segurança do fármaco para o tratamento da obesidade tenham sido demonstradas em ECRs de boa qualidade. Essa prática deve ser uma exceção, não a regra, e exige um julgamento clínico criterioso. (Classe IIb, Nível de Evidência C)

Posicionamento sobre Fórmulas Magistrais

A diretriz estabelece uma posição clara e enfática contra o uso de produtos manipulados, que frequentemente expõem os pacientes a riscos desnecessários e combinações não testadas.

  • Não se recomenda o uso de fórmulas magistrais e/ou produtos manipulados para o tratamento da obesidade. Esta contraindicação explícita (Classe III, Nível de Evidência C) abrange formulações contendo substâncias como:
    • Diuréticos
    • Hormônios tireoidianos
    • Esteroides anabolizantes
    • Implantes hormonais
    • Gonadotrofina coriônica humana (hCG)
    • Entre outros

Esta forte contraindicação visa proteger os pacientes de tratamentos sem comprovação de eficácia e com potencial significativo de danos à saúde.

Estas considerações finais consolidam a mensagem principal da diretriz, que será reiterada na conclusão deste relatório.

6.0 Conclusão

A "Diretriz Brasileira de Tratamento Farmacológico da Obesidade - ABESO 2026" se estabelece como um documento de referência essencial, oferecendo um roteiro claro e baseado nas melhores evidências disponíveis para a condução da prática clínica no Brasil. Sua elaboração criteriosa, transparente e inclusiva reflete o compromisso com a saúde e o bem-estar das pessoas que vivem com obesidade.

A mensagem central que permeia todas as recomendações é inequívoca: o tratamento farmacológico da obesidade deve ser sempre individualizado, cientificamente embasado e integrado a uma abordagem completa de mudança de estilo de vida. O objetivo final transcende a perda de peso, focando na melhoria da saúde global, na remissão de comorbidades e no aprimoramento da qualidade de vida dos pacientes. A adesão a estas diretrizes capacita os profissionais de saúde a oferecer um cuidado de excelência, garantindo uma prática clínica eficaz, segura e verdadeiramente centrada no paciente.

Artigo original: https://abeso.org.br/wp-content/uploads/2025/12/Diretriz-Brasileira-de-Tratamento-Farmacologico-da-Obesidade-ABESO-2026.pdf

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