Dia 1º de Dezembro comemora-se o Dia mundial da Luta contra o HIV. Hoje o texto é voltado para Nutrólogos e Nutricionistas, já que na literatura encontra-se pouco material em português. Como o ambulatório de Nutrologia que estou à frente desde 2015 é ao lado do ambulatório de infectologia, ao longo desses anos tive que aprender a manejar bem os pacientes vivendo com HIV e ensinar para as nutricionistas que atuam comigo, as particularidades. Espero que gostem do texto.
A Nova Fronteira da Nutrologia na Era do HIV como Doença Crônica
A terapia antirretroviral (TARV) de alta eficácia transformou a infecção pelo HIV, convertendo o que antes era uma condição de prognóstico reservado em uma doença inflamatória crônica manejável.
Nesta nova realidade, a longevidade e a qualidade de vida dos pacientes tornaram-se os objetivos centrais do cuidado, e a Nutrologia emerge como uma especialidade de importância estratégica. O médico nutrólogo assume um papel fundamental, atuando não apenas na correção de deficiências, mas como um arquiteto da saúde metabólica a longo prazo, ajudando a construir as bases para um envelhecimento saudável.
A relevância da alimentação no contexto do HIV é dupla e interconectada. Primeiramente, uma dieta balanceada e rica em nutrientes é a base para o fortalecimento do sistema imunológico, fornecendo os substratos necessários para a sua função ótima.
Em segundo lugar, a intervenção nutricional é uma ferramenta poderosa para mitigar tanto os efeitos colaterais agudos da TARV quanto as complicações metabólicas crônicas associadas à infecção persistente. Uma alimentação planejada auxilia no controle de sintomas, na prevenção de complicações e na modulação dos efeitos adversos das medicações, sendo um pilar indispensável no tratamento integral.
Essa abordagem se torna ainda mais crítica quando consideramos a complexa realidade metabólica do paciente vivendo com HIV. A infecção, mesmo quando controlada, impõe desafios únicos que se manifestam em extremos opostos do espectro nutricional: a perda de peso acentuada e a tendência ao sobrepeso e à obesidade.
A palavra-chave no manejo do paciente vivendo com HIV com carga viral indetectável e sustentada é inflamação. Após o controle virológico ser alcançado, a infecção passa a se comportar menos como uma doença infecciosa aguda e muito mais como uma condição inflamatória crônica, comparável em termos inflamatórios a um diabetes mellitus bem compensado.
Embora o vírus esteja suprimido, o organismo mantém um estado inflamatório residual de baixo grau, que é um fator de risco para o desenvolvimento de diversas comorbidades associadas ao envelhecimento.
Nesse contexto, o objetivo central e inegociável da terapia nutricional é não permitir a introdução de fontes adicionais de inflamação. A estratégia mais eficaz para alcançar essa meta é o combate rigoroso ao excesso de peso e, mais especificamente, ao acúmulo de gordura corporal, já que hoje sabemos que o tecido adiposo, particularmente o visceral, é metabolicamente ativo e produz citocinas pró-inflamatórias que perpetuam e agravam o estado inflamatório basal induzido pelo HIV. Portanto, cada prescrição dietética deve ser desenhada com o propósito de modular essa resposta inflamatória.
A infecção pelo HIV deixou há muito de ser sinônimo de caquexia terminal e passou a ser uma condição crônica inflamatória (manejável), com sobrevida prolongada e perfil de comorbidades cada vez mais parecido ao da população geral.
Para o nutrólogo/nutricionista, isso significa que eles não podem mais enxergar o HIV apenas como um detalhe na anamnese, mas como um eixo central de decisão clínica, que impacta avaliação nutricional, conduta dietética, suplementação, manejo de obesidade, sarcopenia, osteopenia e risco cardiovascular global.
Na prática, o consultório de Nutrologia recebe constantemente pessoas vivendo com HIV (PVHIV) com IMC normal ou elevado, em uso de terapia antirretroviral (TARV) moderna, polifarmácia e múltiplos fatores de risco cardiometabólicos.
A relação entre HIV e nutrição é bidirecional e complexa: o vírus e a resposta inflamatória crônica alteram metabolismo energético, composição corporal, absorção intestinal e status de micronutrientes, enquanto o estado nutricional e o padrão alimentar modulam progressão da doença, risco de infecções oportunistas, resposta virológica e toxicidade medicamentosa.
Em um extremo, ainda lidamos com desnutrição, wasting e insegurança alimentar em subgrupos vulneráveis que não utilizam a TARV; no outro, lidamos com excesso de peso, dislipidemia, resistência à insulina e esteatose hepática associados a TARV baseada em inibidores de integrase e tenofovir alafenamida.
Além disso, a população que vive com HIV está envelhecendo: aproximadamente metade dos indivíduos no mundo já tem mais de 50 anos, com aumento de osteoporose, fragilidade, sarcopenia, doenças cardiovasculares e neoplasias.
Essa transição epidemiológica exige que o nutrólogo/nutricionista pensem em prevenção de longo prazo, abordando desde a correção de deficiências de micronutrientes e otimização proteica até estratégias para reduzir risco de infarto, AVC e fraturas.
O raciocínio “tratar primeiro o vírus e depois pensar na dieta” está ultrapassado: intervenções nutricionais bem desenhadas fazem parte do tratamento de base. A TARV foi revolucionária na história do HIV. Mas um adendo importante, quando se estuda HIV e efeitos colaterais da TARV, muitos desses são com TARV mais antiga. Ou seja, a maioria dos estudos que mostram efeitos adversos com repercussão metabólica e/ou nutricional são com drogas como o Tenofovir ou outros antiretrovirais mais antigos.
O objetivo deste texto é organizar o que há de mais relevante sobre HIV e Nutrologia/Nutrição para a prática clínica:
- Entender a fisiopatologia da relação entre infecção e metabolismo,
- Identificar grupos de maior risco de desnutrição e de ganho de peso excessivo,
- Reconhecer o impacto nutricional das diferentes classes de antirretrovirais,
- Estruturar protocolos de triagem laboratorial,
- Construir estratégias dietéticas e de suplementação baseadas em evidências robustas, com ênfase em diretrizes recentes e estudos de alto impacto.
Fisiopatologia da relação HIV–nutrição e metabolismo energético
Na ausência de tratamento, a multiplicação viral desenfreada induz um estado de inflamação sistêmica crônica e de alta intensidade. Este processo eleva significativamente a taxa metabólica basal, ou seja, o gasto energético do corpo em repouso.
O organismo passa a operar em um regime de alto consumo calórico constante, o que frequentemente resulta em uma perda de peso não intencional, mesmo que o paciente não perceba uma sensação clara de doença. Este emagrecimento pode ser, inclusive, o primeiro sintoma que leva o indivíduo a procurar avaliação médica.
Este estado hipercatabólico é agravado por manifestações clínicas associadas que comprometem ainda mais o estado nutricional. A sarcopenia, uma perda acentuada de massa muscular com redução da força muscular, enfraquece o paciente e debilita sua resposta imune.
A lipodistrofia, especificamente a perda de gordura facial (lipoatrofia), confere a característica "face de doença" que estigmatizou a AIDS em seus primeiros anos.
Adicionalmente, quadros de diarreia persistente ou recorrente podem prejudicar a absorção de nutrientes essenciais, intensificando o ciclo de desnutrição e deterioração clínica.
Na fase não tratada ou tardiamente tratada da infecção pelo HIV, além do aumento do catabolismo da própria infecção, há um aumento de citocinas inflamatórias como TNF-α, IL-1 e IL-6 que aumentam a proteólise muscular, alteram a ação da insulina e favorecem resistência anabólica, o que explica por que, em muitos pacientes, o peso total pode cair pouco enquanto a perda de músculo é expressiva.
Esse background inflamatório, mesmo na era da TARV, não desaparece por completo e ajuda a entender por que parte desses pacientes evolui com sarcopenia “oculta”. O quadro se agrava pelo envelhecimento que presenciamos na população.
A mucosa intestinal também é alvo precoce da infecção: há depleção de linfócitos T CD4+ no tecido linfoide associado ao intestino, alteração de junções epiteliais e aumento de translocação microbiana. Isso se traduz clinicamente em maior risco de diarreia, má absorção e intolerâncias alimentares, mas também em mudanças na composição da microbiota, com impacto potencial na síntese de vitaminas do complexo B, folato e outros metabólitos.
Para o nutrólogo/nutricionista, isso significa que queixas aparentemente “funcionais” podem ter raiz orgânica ligada ao HIV, mesmo com carga viral indetectável.
Estresse oxidativo, Vitamina B3, Selênio e outros nutrientes na fisiopatologia
O estresse oxidativo é outra marca registrada na infecçao por HIV, mesmo com carga viral indetectável. Há depleção de cisteína, redução do pool de glutationa (GSH, composta por glutamato+cisteína+glicina) e queda progressiva do selênio sérico, correlacionadas com progressão da doença e mortalidade.
Ou seja, é dever do nutrólogo/nutricionista sempre frisar para os pacientes vivendo com HIV que faz-se necessário a ingestão de fontes de selênio e cisteína, bem como outros co-fatores para a síntese de GSH.
Existe uma correlação documentada entre nicotinamida e HIV, principalmente através do seu impacto na ativação imunológica, metabolismo do triptofano e potenciais efeitos terapêuticos, embora mais pesquisas sejam necessárias para estabelecer sua utilidade clínica.
A infecção pelo HIV está associada a alterações metabólicas relacionadas à nicotinamida e seus precursores. O modelo "oxidative stress-induced niacin sink" (OSINS) propõe que o estresse oxidativo associado ao HIV pode induzir depleção de niacina/NAD+ via ativação da poli(ADP-ribose) polimerase (PARP), levando à oxidação do triptofano para síntese compensatória de niacina, contribuindo assim para tolerância imunológica e perda de células T.
Estudos em populações africanas demonstraram que pacientes com HIV apresentam depleção significativa de triptofano e acúmulo de metabólitos neurotóxicos como o ácido quinolínico, com níveis marcadamente superiores aos observados em países desenvolvidos.
A via da nicotinamida fosforribosiltransferase (Nampt)/sirtuína 1 está envolvida na transativação do HIV-1, com a proteína Tat viral causando depleção de NAD+ e inibição da expressão de Nampt.
Nos últimos 5 anos temos visto um boom de suplementação com nicotinamida, graças a vários estudos evidenciando efeitos moduladores importantes. Em estudos clínicos, doses farmacológicas de nicotinamida aumentaram o triptofano plasmático em média 40% em pacientes infectados pelo HIV, sendo o primeiro relato de uso bem-sucedido de uma vitamina para reverter esta anormalidade metabólica induzida pelo HIV.
O mononucleotídeo de nicotinamida (NMN) suprimiu a produção de p24 do HIV-1 e a proliferação em células T CD4+ infectadas, especialmente em células T CD4+ CD25+ ativadas, além de inibir a hiperativação de células T CD4+ em camundongos humanizados infectados. In vitro, a nicotinamida reduziu significativamente a fragmentação apoptótica do DNA tanto em células MT-4 infectadas pelo HIV-1 quanto em linfócitos de indivíduos HIV-positivos. Lembrando que apesar de existir estudos em humanos, a maioria dos estudos que relacionam nicotinamida com HIV são modelos em animais ou in vitro.
Estudos recentes demonstram que a nicotinamida suprime a ativação de células T CD4+, reduzindo proliferação, expressão de marcadores de ativação e produção de citocinas pró-inflamatórias (IL-2, IFNγ, IL-17), através da modulação de processos metabólicos essenciais incluindo glicólise e produção de espécies reativas de oxigênio.
Um ensaio clínico randomizado (NCT02018965) foi desenhado para avaliar niacina de liberação prolongada (Niaspan) em combinação com terapia antirretroviral em pacientes com resposta imunológica subótima, visando reduzir ativação imunológica e melhorar recuperação de células T CD4+.
A nicotinamida também demonstrou atividade antimicrobiana direta contra HIV, embora os mecanismos precisos necessitem de maior elucidação.
A terapia antirretroviral parcialmente corrige distúrbios na via da quinurenina, com pacientes em tratamento apresentando níveis de triptofano 12,3% maiores e nicotinamida 27,2% maiores comparados a pacientes virgens de tratamento.
Suplementação com vitaminas B, C e E demonstrou benefícios potenciais no estado imunológico de indivíduos infectados pelo HIV.
Eixos hormonais também são influenciados pelo HIV e pela inflamação crônica. Hipogonadismo funcional, redução do GH e IGF-1 e alterações da leptina e adiponectina são descritos, especialmente em fases avançadas ou em associação com desnutrição e uso de antirretrovirais mais tóxicos.
O resultado é um círculo vicioso de perda de massa muscular, redução de força, menor atividade física espontânea e piora da resistência insulínica.
Sendo assim, é importante nutrólogos considerarem esse cenário quando avaliam fadiga, fraqueza e baixa performance física em PVHIV, evitando atribuir tudo apenas à TARV, ao “sedentarismo do paciente” ou impacto psicológico da própria situação, ainda estigmatizada.
Desnutrição, wasting e grupos de maior risco
Apesar da imagem atual mais “metabólica” do HIV, a desnutrição e o wasting continuam em vários contextos, mas não tão relevante quanto no passado. O wasting relacionado ao HIV é caracterizado por perda involuntária de peso, principalmente à custa de massa magra, associada a infecções oportunistas, inflamação crônica, ingestão alimentar reduzida e má absorção.
Mesmo na era da TARV, perda ponderal significativa se correlaciona com pior prognóstico, maior risco de hospitalização e mortalidade, tornando fundamental que o nutrólogo ou nutricionista não subestimem quedas pequenas mas progressivas de peso em pacientes aparentemente estáveis.
Os grupos de maior risco para desnutrição incluem pessoas em estágios clínicos avançados da OMS (III/IV), com contagem de CD4 <200 células/mm³, especialmente <100 células/mm³, recém-iniciando TARV, com coinfecção tuberculose ou outras infecções oportunistas e aqueles com insegurança alimentar importante.
Estudos em países de baixa e média renda mostram que a prevalência de desnutrição aumenta progressivamente dos estágios iniciais da doença para os mais avançados, e que a combinação de baixa contagem de CD4, TB ativa e alimentação inadequada multiplica o risco de baixa reserva nutricional.
Infecções oportunistas gastrointestinais, como criptococose, microsporidiose, CMV intestinal e candidíase esofágica, além de enteropatias inespecíficas associadas ao HIV, agravam ainda mais a situação, causando diarreia crônica, má absorção de gorduras, proteínas e micronutrientes, além de anorexia por dor, náusea ou disfagia.
Nesses casos, intervenções nutrológicas precisam ser coordenadas com o tratamento infeccioso, muitas vezes priorizando dietas de mais fácil digestão, suplementação hipercalórica e hiperproteica, uso criterioso de fibras e monitorização de eletrólitos, vitaminas lipossolúveis e minerais como zinco e magnésio.
Fatores sociais também pesam muito. Insegurança alimentar domiciliar aumenta em várias vezes o risco de desnutrição, compromete adesão à TARV e dificulta o seguimento em serviços de saúde. Pacientes desempregados, com baixa escolaridade, viúvos, em situação de vulnerabilidade social ou que vivem em áreas rurais com acesso limitado a serviços e alimentos in natura formam um grupo crítico para o qual intervenções nutricionais isoladas têm pouco efeito se não forem acompanhadas de suporte social, programas de transferência de renda ou cestas de alimentos.
Outro ponto importante é a funcionalidade: pacientes acamados ou com limitação de mobilidade têm risco significativamente maior de desnutrição e perda de massa muscular, não apenas por menor ingestão, mas por menor estímulo mecânico ao músculo, inflamação sistêmica elevada e maior tempo de internação.
No ambulatório de Nutrologia que atendo (ao lado do da infectologia, por isso minha experiência de 11 anos com esses pacientes), é comum encontrar pacientes com HIV que “comem bem” segundo o relato, mas mantêm baixa massa magra pela combinação de inflamação residual, sedentarismo e baixa ingestão proteica relativa, o que exige uma abordagem ativa de reabilitação e suporte proteico.
Transição epidemiológica: da desnutrição à obesidade na era da TARV
Com a prescrição da TARV e a consequente supressão da carga viral, ocorre uma mudança metabólica drástica. A diminuição da replicação do HIV reduz os níveis de mediadores inflamatórios sistêmicos, o que leva à normalização da taxa metabólica basal.
O corpo deixa de operar naquele estado de alto gasto energético. A situação é análoga à de um atleta de alto rendimento que se aposenta: o gasto calórico diminui, mas os hábitos alimentares frequentemente permanecem os mesmos. Se o paciente mantiver a ingestão calórica que antes apenas compensava o catabolismo, o balanço energético torna-se positivo, resultando em ganho de peso. Com a expansão da TARV de alta potência, houve uma mudança radical no perfil nutricional das PVHIV. A desnutrição grave e o wasting típicos da era pré-TARV tornaram-se menos frequentes na maioria dos contextos urbanos, enquanto sobrepeso, obesidade, síndrome metabólica e doença cardiovascular ganharam protagonismo.
Em alguns estudos, mais da metade dos pacientes em TARV apresenta excesso de peso ou obesidade, muitas vezes combinados com baixa massa magra e densidade mineral óssea reduzida, caracterizando um fenótipo de obesidade sarcopênica que é altamente relevante para o nutrólogo.
O ganho de peso após início da TARV é multifatorial. Em parte, representa o chamado “return to health”: melhora do apetite, menor gasto energético por redução da inflamação e resolução de infecções oportunistas.
Porém, evidências consistentes mostram que regimes específicos, particularmente aqueles baseados em inibidores de integrase (INSTIs) como dolutegravir e bictegravir, e o tenofovir alafenamida (TAF), estão associados a ganho de peso maior e mais rápido do que regimes antigos com efavirenz ou tenofovir disoproxil fumarato (TDF). Em ensaios clínicos, diferenças de 5 a 7 kg em 96 a 144 semanas não são incomuns em determinadas combinações, principalmente em mulheres.
Há diferenças claras de gênero e etnia nesse fenômeno: mulheres, pessoas negras e indivíduos com IMC basal mais baixo apresentam maior probabilidade de ganho de peso ≥10% após início ou troca de TARV.
Estudos em coortes multicêntricas mostram que mulheres negras em uso de DTG+TAF/FTC podem ganhar mais de 10 kg em três anos, com aumento sobremaneira em tecido adiposo de tronco e membros, o que se traduz em maior circunferência de cintura, maior gordura visceral e aumento do risco cardiometabólico.
A distribuição da gordura também mudou: além da clássica lipodistrofia associada a NRTIs de primeira geração e alguns inibidores de protease, vemos agora um padrão de lipohipertrofia visceral, com aumento de gordura abdominal, hepática (esteatose hepática metabólica = MASLD) e até pericárdica. Isso ocorre muitas vezes em pacientes sem ganho de peso extremo, mas com redistribuição desfavorável da gordura corporal, o que reforça a importância de olhar além do IMC e avaliar circunferência abdominal, composição corporal e marcadores de esteatose.
As consequências metabólicas desse cenário são claras: aumento de dislipidemia aterogênica, resistência à insulina, diabetes tipo 2, hipertensão arterial e doença cardiovascular aterosclerótica. O risco de esteatose hepática, NASH e fibrose avançada também é maior, especialmente em associação com obesidade, TAF, instis e outros fatores como álcool e hepatites virais.
Para o nutrólogo/nutricionista, isso significa que o paciente vivendo com HIV em TARV moderna precisa ser manejado com a mesma vigilância (ou até maior) que qualquer outro paciente de alto risco cardiometabólico, integrando dieta, exercício, controle de peso e, quando necessário, farmacoterapia.
Deficiências de micronutrientes no HIV: o que o nutrólogo/nutricionista precisam rastrear
Mesmo na era da TARV, deficiências de alguns micronutrientes são extremamente prevalentes em pessoas vivendo com HIV, mesmo nos pacientes com carga viral indetectável. Obviamente que com TARV mais potente essas deficiências antes altamente prevalentes tem decaído quando se olha a literatura da década de 90 e 2000.
Galeana et al publicaram na revista Nutrition (2025) um estudo evidenciando a baixa ingestão de alguns nutrientes. High prevalence of suboptimal nutrient intake and comorbidities of people living with HIV on antiretroviral therapy, os autores analisaram uma coorte com 72 PVHIV.
Observaram ingestão subótima de flúor (95,8%), iodo (90,2%), ômega-6 (88,9%), potássio (86,1%), ômega-3 (81,9%), vitamina E (79,1%), vitamina A (75%), magnésio (66,6%), manganês (58,3%) e molibdênio (50%).
A obesidade foi observada em 52% da população estudada, e 51% apresentavam baixa densidade mineral óssea, 40% hipertrigliceridemia, 14% dislipidemia e 9% hiperglicemia. O que corrobora com o que a literatura tem mostrado, ou seja, pacientes metabólicos.
A baixa ingestão de cromo foi associada a uma maior porcentagem de células T CD4 + ativadas (P = 0,04), e a baixa ingestão de vitamina B3 foi associada a uma maior porcentagem de células T CD8 + ativadas (P = 0,028).
Além disso, uma baixa ingestão de fósforo e vitamina B3 foi associada a níveis aumentados de interleucinas 1 e 6 e fator de necrose tumoral-α no plasma (P < 0,05). Mais uma vez a Niacina com papel importante. https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/40435889/ esse é o link do estudo.
Estudos multicêntricos mostram que selênio, vitamina D e vitamina B6 estão entre as deficiências mais comuns, com prevalências que ultrapassam 40–50% em algumas coortes.
Além disso, níveis subótimos de vitaminas A, E, C, carotenoides, zinco, vitamina B12, magnésio, potássio e outros minerais são frequentemente identificados, especialmente em pacientes com dieta pobre em alimentos in natura, insegurança alimentar ou diarreia crônica.
A deficiência de vitamina D merece atenção especial. Entre 40 e 80% das pessoas vivendo com HIV apresentam 25-hidroxivitamina D em níveis insuficientes, e o uso de Tenofovir está associado a maior perda de densidade mineral óssea e risco de osteomalácia, especialmente quando há perda renal de fosfato.
A suplementação de vitamina D aumenta significativamente os níveis séricos e parece reduzir a incidência de tuberculose em alguns contextos, com efeito mais pronunciado em pacientes com CD4 basal <350 células/µL.
Para o nutrólogo, faz sentido rastrear regularmente vitamina D em todos PVHIV. Com atenção especial aos que usam Tenofovir. Solicitar densitometria, avaliar metabolismo do cálcio/fósforo.
O selênio é outro micronutriente crítico. Reduções progressivas nos níveis séricos de selênio se correlacionam com pior desfecho clínico e mortalidade em HIV, enquanto suplementação mostrou melhorar hemoglobina e IMC em alguns estudos.
Além de seu papel antioxidante como cofator da glutationa peroxidase, o selênio modula resposta imune e inflamação, com correlação inversa com citocinas pró-inflamatórias como IL-1β, IL-6 e TNF-α. Em populações com baixa ingestão dietética de selênio (cenário comum em diversas regiões do Brasil, em especial no cerrado) o nutrólogo deve ter limiar baixo para investigar e suplementar de forma racional.
Com um adendo, sabendo que a suplementação de selênio sintético ainda é incerta na medicina, com estudos controversos, o mais prudente é aumentar a oferta de fontes alimentares, porém, com atenção ao risco de selenose. Muitas vezes 1 única unidade de castanha do Pará fornece mais de 1000mcg de selênio e se consumido de forma prolongada, pode levar à toxicidade.
O zinco desempenha papel relevante na imunidade inata e adaptativa, na integridade de mucosa intestinal e na síntese proteica. Deficiência de zinco (em estudos da década de 99) era observada em parcela significativa dos pacientes em uso de TARV de primeira geração. Na atualidade os estudos não mostram essa deficiência, mas a ingestão (como na população como um todo) pode ser subótima.
Há evidências de que suplementação pode favorecer recuperação imunológica em parte dos pacientes, além de reduzir morbidade diarreica, especialmente em crianças. Em adultos, o impacto sobre CD4 é mais discreto, mas o zinco continua importante para composição corporal, densidade óssea e modulação da inflamação, justificando sua avaliação em pacientes com diarreia recorrente, hipogonadismo, queda de cabelo e cicatrização lenta.
Vitaminas do complexo B, especialmente B12, B6, niacina, tiamina e folato, também são frequentemente subótimas. Níveis baixos de vitamina B12 associam-se a declínio mais rápido da contagem de CD4, e a normalização dos níveis é acompanhada de melhores desfechos imunológicos em alguns estudos.
Alterações da microbiota em pessoas com HIV, com redução de vias de biossíntese microbiana de tiamina e folato, ajudam a explicar por que a TARV isoladamente não corrige essas deficiências.
Baixa ingestão de niacina, por sua vez, se relaciona ao modelo OSINS, com possível impacto em fadiga e função imune.
Por fim, devemos lembrar de outros micronutrientes frequentemente negligenciados: magnésio, cálcio, potássio, molibdênio, iodo e ácidos graxos essenciais ômega-3 e ômega-6.
Em coortes recentes, a ingestão de potássio, magnésio e gorduras poli-insaturadas é marcadamente inferior ao recomendado, o que agrava riscos de hipertensão, arritmias, perda de massa ósea e inflamação crônica.
Diante desse cenário, há alguns autores que preconizam que PVHIV se beneficiariam de um multivitamínico e multimineral diário em doses próximas a 100% da IDR, reservando megadoses individuais para casos com deficiência documentada ou indicações específicas. Particularmente, sou contra. A reposição deve ser pontual, devendo o nutrólogo e nutricionista conhecer os nutrientes mais críticos envolvidos na infecção.
Efeitos nutricionais e metabólicos das classes de antirretrovirais
Os antirretrovirais de primeira geração, especialmente alguns NRTIs (zidovudina, estavudina, didanosina), foram responsáveis por uma série de toxicidades nutricionais e metabólicas que deixaram marcas duradouras, como lipoatrofia, neuropatia periférica, miopatia, acidose láctica e anemias importantes.
Embora esses fármacos estejam, em grande parte, aposentados em diretrizes atuais, muitos pacientes mais velhos ainda carregam as sequelas de uso prolongado, como perda de gordura subcutânea em face e membros (lipodistrofia), baixa muscularidade e alterações mitocondriais. O nutrólogo deve reconhecer esse histórico, pois ele modifica o potencial de recuperação de composição corporal e a resposta ao exercício.
Entre os NRTIs atualmente utilizados, Tenofovir Alafenamida (TAF), Tenofovir disoproxil fumarato (TDF), abacavir, lamivudina e emtricitabina têm perfis distintos do ponto de vista nutrológico.
O TDF associa-se a maior perda de densidade mineral óssea e risco de osteomalácia, especialmente quando combinado a potencializadores farmacocinéticos, exigindo vigilância para hipofosfatemia, dor óssea, fraturas e necessidade de suplementação de cálcio e vitamina D.
Já o TAF, por outro lado, é menos agressivo para os ossos e rins, mas está associado a aumento de triglicerídeos, LDL e HDL, além de ganho de peso maior, especialmente quando combinado a INSTIs, o que exige foco maior em uma dieta mais cardioprotetora (DASH ou padrão mediterrâneo).
Entre os NNRTIs, o efavirenz é conhecido por aumentar triglicerídeos e LDL, além de causar efeitos neuropsíquicos (insônia, sonhos vívidos, depressão) que podem prejudicar apetite, ritmo de sono e adesão ao plano alimentar.
A nevirapina carrega risco de hepatotoxicidade grave e rash, principalmente em indivíduos com CD4 elevados, o que pode limitar o uso em certos contextos.
A rilpivirina, embora com perfil metabólico mais neutro, depende de acidificação gástrica adequada para absorção, o que se torna relevante quando o paciente faz uso concomitante de inibidores de bomba de prótons ou agonistas de GLP-1 que afetam motilidade e secreção gástrica.
Os inibidores de protease (IPs) potencializados (como darunavir/ritonavir ou atazanavir/ritonavir) permanecem importantes em cenários específicos, mas trazem um pacote de efeitos adversos com impacto direto no estado nutricional: dislipidemia com aumento de triglicerídeos e LDL, resistência à insulina, diarreia crônica e, em alguns casos, icterícia por hiperbilirrubinemia indireta (no caso do atazanavir).
Para o nutrólogo, pacientes em uso de IPs são candidatos prioritários para intervenção agressiva sobre padrão alimentar, atividade física e, frequentemente, indicação de estatinas, sempre atento a interações farmacológicas.
Os inibidores de integrase (dolutegravir, bictegravir, raltegravir, cabotegravir) revolucionaram a terapia pelo perfil de segurança global e alta potência virológica, mas trouxeram o grande desafio do ganho de peso e da lipohipertrofia.
Os mecanismos propostos incluem efeitos diretos em adipócitos, com aumento de adipogênese e lipogênese, alteração de sinalização via receptores de melanocortina, modulação de leptina e adiponectina e possível interferência em vias mitocondriais.
Na prática, percebemos que pacientes que, após anos com peso estável em EFV/TDF, ganham 5–10 kg em poucos meses ao trocar para INSTI+TAF, particularmente quadro é mais acentuado em mulheres negras e pessoas com baixo IMC basal.
Novas formulações injetáveis de longa ação, como cabotegravir/rilpivirina intramuscular, ainda têm impacto metabólico menos descrito, mas é razoável supor que compartilhem parte do perfil de ganho de peso associado aos INSTIs orais.
Além disso, o fato de serem mensal ou bimestralmente administradas aumenta a importância do acompanhamento ambulatorial, já que não há “ajuste fino” de dose em resposta a mudanças de peso ou perfil lipídico, exigindo intervenções mais precoces em dieta, exercício e, eventualmente, medicações coadjuvantes para obesidade e dislipidemia.
Estratégias nutricionais baseadas em evidências no manejo do HIV
A base da prática nutrológica em HIV é uma avaliação nutricional abrangente que vá além do “peso e IMC”. Isso inclui:
- Anamnese alimentar detalhada: recordatório alimentar de 7 dias é o ideal
- Rastreamento de insegurança alimentar,
- Avaliação de sintomas gastrointestinais,
- Análise de composição corporal (idealmente por DXA ou bioimpedância),
- Circunferência da cintura,
- Força de preensão palmar com dinamômetro,
- Investigação de sinais clínicos de deficiências de micronutrientes,
- Estratificação do risco cardiometabólico fazendo 2 perguntas básicas: Qual a chance desse paciente ter um evento aterosclerótico nos próximos anos? Quão “metabolicamente doente” ele já está (resistência insulínica, SM, DM, MASLD, dano de órgão-alvo)?
- Aplicação da Cálculadora Prevent combinada com o questionário Finnish Diabetes Risk Score (FINDRISC)
Em muitos serviços, é possível implementar triagens simplificadas de risco nutricional, que direcionam quem precisa de atendimento nutrológico intensivo com prioridade. Temos como opções:
- MUST – Malnutrition Universal Screening Tool
- NRS-2002 – Nutritional Risk Screening 2002
- Avaliação subjetiva global (SGA) modificada para HIV: Tecnicamente é uma avaliação, não uma triagem, mas na prática muitos serviços usam como “triagem detalhada”. é usada em estudos desde a década de 90 e avalia: perda de peso, mudança na ingestão, sintomas gastrointestinais, capacidade funcional, exame físico (massa muscular/gordura, edemas, ascite). Útil em PVHIV porque captura melhor situações com IMC dentro da normalidade, mas perda de massa magra, caquexia, lipodistrofia etc.
- Escores de risco nutricional específicos para HIV (em estudo): Há propostas de escore de risco nutricional específico para HIV, combinando dados clínicos, laboratoriais e da doença (CD4, carga viral, comorbidades), ainda em validação.
No que diz respeito à suplementação, alguns autores recomendam multivitamínico/mineral diário em doses próximas a 100% da IDR. Para alguns pesquisadores, essa é uma estratégia segura e razoável para a maioria das PVHIV, especialmente em contextos de insegurança alimentar ou baixa qualidade da dieta.
A partir daí, o nutrólogo decide, com base em exames, se há indicação de suplementação específica de vitamina D, selênio, zinco, vitamina B12, vitamina B6 ou vitamina E, evitando megadoses sem indicação clara. Como já relatei acima.
Estudos recentes apontam benefícios da vitamina D na redução de TB bacilífera em subgrupos, e de selênio e vitamina E em parâmetros como hemoglobina e IMC, embora a tradução disso em desfechos “duros” ainda exija mais dados.
Intervenções focadas em macronutrientes têm impacto robusto em pacientes com desnutrição ou baixo IMC. Suplementos à base de lipídios prontos para uso, misturas fortificadas de milho e soja, cestas de alimentos e transferências condicionais de renda mostram-se eficazes em melhorar IMC, massa gorda e massa livre de gordura, especialmente em contextos de baixa renda.
Para o nutrólogo, isso significa que não basta prescrever “mais proteína” se o paciente não tem acesso ao alimento: é necessário articular com programas sociais e serviços de assistência para viabilizar o plano nutricional. Teoricamente o ideal seria prescrever Whey para os pacientes, mas atuamos em saúde pública.
No manejo da dislipidemia associada à TARV, padrões alimentares como dieta mediterrânea, DASH ou versões plant-based moderadas em carboidrato e ricas em fibras solúveis, gorduras mono e poli-insaturadas e alimentos integrais são especialmente úteis.
A redução de gordura saturada, eliminação de gorduras trans, aumento de frutas, verduras, legumes, leguminosas, oleaginosas e peixes, além do uso estratégico de fibras solúveis (aveia, psyllium, beta-glucanas) ajuda a controlar LDL e triglicerídeos, muitas vezes permitindo retardar ou reduzir a dose de estatinas. Em HIV, esses padrões devem ser adaptados às preferências culturais, orçamento e sintomas gastrointestinais.
A resistência à insulina e o diabetes tipo 2, frequentes em pacientes em uso de IPs, TAF e INSTIs, também exigem intervenção nutrológica estruturada. Estratégias incluem moderação de carboidratos refinados, escolha de carboidratos complexos com baixo índice glicêmico, fracionamento adequado das refeições, priorização de proteínas de alto valor biológico e aumento de fibras.
Frisar para esses pacientes que perdas de 5–10% do peso corporal já se traduzem em melhora significativa da sensibilidade à insulina e dos marcadores glicêmicos, reforçando a importância de metas realistas e sustentáveis, em vez de abordagens restritivas radicais que prejudicam adesão.
Na presença de efeitos gastrointestinais da TARV (náuseas, vômitos, diarreia), ajustes dietéticos simples podem fazer diferença grande:
- Refeições pequenas e frequentes,
- Evitar alimentos muito gordurosos ou condimentados,
- Fracionar ingestão de fibras (especialmente nas formas solúveis),
- Assegurar hidratação adequada,
- Corrigir perdas de eletrólitos.
Em alguns casos, faz sentido testar estratégias específicas como redução de lactose, modulação de FODMAPs ou uso de probióticos, sempre integrando essas medidas às decisões do infectologista sobre trocas de esquema quando os sintomas são persistentes.
Pilares da dieta Antiinflamatória para PVHIV
Abaixo alguns fundamentos práticos para a prescrição de uma dieta com foco anti-inflamatório (padrao mediterrâneo ou não), adaptada às necessidades específicas dos PVHIV no Brasil. A implementação desses princípios visa não apenas o controle de peso, mas também a modulação da resposta imune e a otimização da saúde metabólica geral, já que é um paciente sabidamente com maior risco cardiometabólico.
Os pilares nutricionais essenciais podem ser sintetizados nos seguintes pontos:
- Dieta rica em vegetais, frutas, grãos integrais e legumes: A base da alimentação deve ser composta por alimentos de origem vegetal. Eles fornecem um alto aporte de fibras, que são cruciais para a saúde intestinal e o controle glicêmico, além de uma vasta gama de vitaminas e antioxidantes que combatem o estresse oxidativo, um componente da inflamação crônica.
- Fontes de proteína magra: A ingestão adequada de proteína de alta qualidade é fundamental para a manutenção e recuperação da massa muscular. Este pilar atua diretamente no combate à sarcopenia, uma condição prevalente e debilitante em PVHIV, fortalecendo o sistema imunológico e a capacidade funcional.
- Limitação de doces, refrigerantes e alimentos ultraprocessados: Estes produtos são ricos em açúcares simples, gorduras de má qualidade e aditivos químicos que possuem um potente efeito pró-inflamatório. Seu consumo deve ser minimizado ao máximo, pois eles contribuem diretamente para o ganho de peso, a resistência à insulina e a inflamação sistêmica.
- Inclusão de proteínas, carboidratos e gorduras boas em todas as refeições: A combinação equilibrada de macronutrientes em cada refeição, incluindo os lanches, é essencial para promover a saciedade, estabilizar os níveis de glicose no sangue e evitar picos de insulina. Essa estratégia ajuda no controle do apetite e na manutenção de um balanço energético saudável ao longo do dia.
A aplicação consistente desses pilares é um norteamento para o nutrólogo/nutricionista estruturar o plano alimentar. Para aprofundar a personalização, é necessário analisar detalhadamente as recomendações para cada macronutriente, vitaminas, minerais.
Particularidades em crianças, adolescentes e idosos vivendo com HIV
Em crianças, a desnutrição continua sendo uma das principais causas de mortalidade associada ao HIV, especialmente em ambientes de recursos limitados.
O acompanhamento nutricional precisa ser mais frequente, com monitorização cuidadosa de peso, estatura, IMC para idade, perímetro cefálico nos menores, além de marcadores laboratoriais quando disponíveis.
A suplementação de vitamina A a partir dos 6 meses, conforme diretrizes internacionais, reduz mortalidade por todas as causas em contextos de alta carga infecciosa, e o zinco é útil na redução de morbidade diarreica. A educação nutricional deve envolver cuidadores e escolas, articulando TARV, alimentação adequada e cuidado com água e saneamento.
Adolescentes vivendo com HIV representam um grupo altamente desafiador, combinando questões de adesão ao tratamento, imagem corporal, sexualidade e, frequentemente, estigma. Muitos chegam ao consultório com obesidade, lipodistrofia, resistência à insulina ou, no outro extremo, com desnutrição e baixa estatura e puberdade atrasada.
O nutrólogo/nutricionista precisam integrar abordagem nutricional com saúde mental, atividade física estruturada e discussão franca sobre uso de álcool, drogas e padrões alimentares desorganizados. Estratégias rígidas de dieta raramente funcionam; é mais fácil construirmos nessa população pequenas mudanças de alto impacto e monitorar composição corporal e marcadores metabólicos ao longo do tempo.
Idosos com HIV (como já relatei cima, aumentará cada vez mais) acumulam tanto os efeitos de décadas de infecção e TARV quanto os próprios processos do envelhecimento: sarcopenia, fragilidade, osteoporose, declínio cognitivo e polifarmácia.
Para o nutrólogo/nutricionista, isso significa priorizar adequação proteica (geralmente 1,0–1,2 g/kg/dia, ajustando para função renal), otimizar vitamina D, cálcio e outros nutrientes ósseos, incentivar treino de força e equilíbrio, e ajustar densidade calórica conforme apetite e nível de atividade.
Atenção redobrada deve ser dada para questões como disfagia, xerostomia, alterações de paladar, depressão e isolamento social são frequentes e podem sabotar qualquer plano alimentar se não forem ativamente manejadas. As alterações fisiológicas do envelhecimento favorecem alterações no trato digestivo, levando ao surgimento de sintomas e dificuldade adesão ao plano alimentar.
Protocolos práticos de monitorização nutricional no ambulatório de nutrologia/nutrição
Na prática ambulatorial, faz sentido padronizar um mínimo de monitorização para todos os pacientes vivendo com HIV seguidos em Nutrologia/Nutrição. Peso e IMC devem ser registrados em cada consulta, e a circunferência da cintura, ao menos anualmente, com maior frequência nos primeiros 12–18 meses após início ou troca de TARV para regimes com INSTI ou TAF.
Um rastreio rápido de insegurança alimentar pode ser feito com 1–2 perguntas simples sobre falta de condições para comer alimentos saudáveis ou refeições puladas por falta de recursos, ajudando a direcionar quem precisa de intervenção social. Isso ainda é um fato negligenciado por muitos profissionais.
Em termos laboratoriais, um painel básico para acompanhamento nutricional inclui glicemia de jejum, HbA1c (lembrando que em HIV e anemia crônica pode subestimar risco), perfil lipídico completo, TGO, TGP, fosfatase alcalina, GGT, creatinina, ureia, sódio, potássio, fósforo, cálcio total e, quando possível, cálcio iônico. Vitamina D, vitamina B12, folato, ferritina, transferrina e saturação de transferrina são úteis para detectar deficiências frequentes; zinco e selênio podem ser dosados em casos selecionados, especialmente na presença de diarreia crônica, sinais clínicos de deficiência ou inflamação persistente.
A periodicidade desses exames deve ser ajustada ao risco. Pacientes em uso de INSTI+TAF, com ganho de peso rápido, obesidade, história familiar importante de doença cardiovascular, coinfecção hepática ou uso de TDF por muitos anos se beneficiam de controle semestral de marcadores metabólicos e ósseos, enquanto indivíduos clinicamente estáveis, com bom controle de peso e sem comorbidades, podem ser monitorados anualmente. Densitometria óssea é indicada em mulheres pós-menopausa e homens a partir de 50 anos, além de qualquer paciente com história de fratura por fragilidade, uso prolongado de corticoides ou outros fatores de risco relevantes.
Por fim, o nutrólogo/nutricionista deve se ver como parte de uma equipe e não como especialista isolado. Discutir casos com infectologista, endocrinologista, cardiologista, psiquiatra, psicólogo, profissional da educação física amplia as chances de intervenções nutricionais serem efetivas a longo prazo.
É útil documentar metas objetivas no prontuário, como por exemplo:
- Perda de 5–7% de peso em 6 meses,
- Redução de 5 cm de circunferência de cintura,
- Aumento de ingestão de frutas e verduras para 5 porções/dia,
- Normalização de vitamina D
E revisá-las sistematicamente em cada retorno, reforçando o papel da Nutrologia/Nutrição como eixo de cuidado crônico em PVHIV.
Manejo do ganho de peso e da obesidade relacionados à TARV
O primeiro passo para manejar o ganho de peso em pessoas vivendo com HIV é distinguir entre recuperação ponderal desejável e ganho excessivo de gordura. Em pacientes que iniciam TARV com IMC muito baixo, um aumento de peso nos primeiros meses é esperado e geralmente benéfico.
Porém, quando há ganho superior a 5–10% do peso em 6–12 meses, especialmente em indivíduos que já estavam eutróficos ou com sobrepeso, o nutrólogo deve encarar isso como sinal de alerta, principalmente se o regime inclui INSTI+TAF e se há acúmulo de gordura abdominal, aumento rápido de circunferência da cintura e piora do perfil lipídico.
As estratégias não farmacológicas continuam sendo o pilar do manejo. Um plano alimentar individualizado elaborado por nutricionista, com leve déficit calórico (geralmente 300–500 kcal/dia), ênfase em proteínas de alto valor biológico, carboidratos complexos, muitas fibras e gorduras de boa qualidade, é preferível a dietas extremamente restritivas, que podem prejudicar adesão à TARV e aumentar risco de reganho de peso, por baixa adesão. Dieta muito restritivas para essa população é contraindicada.
Padrões como dieta mediterrânea ou DASH adaptada, ou abordagens plant-based moderadas, funcionam bem em HIV, desde que se cuide para evitar déficits de vitamina B12, ferro, zinco e omega-3 em dietas muito restritas em alimentos de origem animal.
A atividade física é tão crucial quanto a dieta. Exercícios aeróbios regulares ajudam no balanço energético e na sensibilidade à insulina, enquanto o treino resistido é fundamental para preservar e aumentar massa muscular, reduzindo o risco de obesidade sarcopênica e fragilidade.
Em PVHIV, especialmente > 50 anos, o plano de exercício deve ser progressivo e supervisionado sempre que possível, levando em conta histórico de lipodistrofia, dor articular, neuropatia periférica e doenças cardiovasculares subjacentes. O papel do nutrólogo é traduzir essa necessidade em metas concretas, frequentemente em parceria com educadores físicos e fisioterapeutas.
O uso de farmacoterapia para obesidade, em especial agonistas de GLP-1 como liraglutida, semaglutida e tirzepatida, surge como opção promissora para PVHIV portadoras de obesidade e comorbidades. Porém, ainda não temos dados mostrando segurança na utilização em longo prazo.
Estudos iniciais sugerem que a eficácia dessas drogas em pacientes com HIV é semelhante à observada na população geral, levando a perdas ponderais significativas e redução de gordura visceral, algo que pode ocorrer pelo uso da TARV.
Por outro lado, há preocupações com perda de massa magra em idosos e pessoas com sarcopenia, além de potenciais interações farmacológicas indiretas via alteração de motilidade e pH gástrico, o que pode interferir na absorção de alguns antirretrovirais. Assim, seu uso deve ser individualizado, com monitorização cuidadosa de composição corporal.
De modo geral, as diretrizes atuais não recomendam trocar TARV apenas pelo ganho de peso, já que a troca para esquemas mais antigos como EFV/TDF pode trazer toxicidades ósseas, renais e neuropsiquiátricas importantes sem garantia de reversão ponderal sustentada.
Exceções podem existir em casos de ganho de peso extremo, lipohipertrofia de difícil manejo ou surgimento de comorbidades graves diretamente relacionadas ao esquema atual, mas essas decisões devem ser tomadas em conjunto com o infectologista, caso a caso.
Para o nutrólogo, na atualidade o foco principal deve ser controlar o risco cardiovascular global, otimizar a dieta, tratar dislipidemia e hipertensão quando presentes, usar a TARV como aliada (não como vilã) dentro de uma estratégia integrada de cuidado. Para além da alimentação, outros pilares são essenciais para garantir a saúde e a longevidade, e devem ser constantemente reforçados na prática clínica:
- Prática regular de atividade física: A combinação de exercícios aeróbicos para a saúde cardiovascular e de força (musculação) para o combate à sarcopenia é indispensável.
- Sono reparador: Um sono de qualidade é vital para a recuperação física, a regulação hormonal e o equilíbrio metabólico.
- Saúde mental equilibrada: O bem-estar psicológico está diretamente ligado à adesão ao tratamento, à qualidade de vida e à capacidade de gerenciar o estresse, um fator pró-inflamatório.
- Adesão contínua à TARV: Este é o pilar não negociável. A tomada contínua e correta dos medicamentos antirretrovirais é o que garante a manutenção da carga viral indetectável, a base sobre a qual todos os outros cuidados são construídos.
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Autor: Dr. Frederico Lobo - Médico Nutrólogo - CRM-GO 13192 - RQE 11915
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