[Conteúdo exclusivo para médicos] - Disbioses intestinais: SIBO, SIFO, IMO e o papel dos prebióticos e probióticos



1. Compreendendo a Microbiota e a Disbiose Intestinal

1.1. Microbiota Gastrointestinal: Eubiose vs. Disbiose

A microbiota intestinal é definida como uma comunidade ecológica complexa de microrganismos comensais, simbióticos e patogênicos que habitam o trato gastrointestinal (TGI), incluindo bactérias, fungos, arqueas, vírus e protozoários. Em um estado de saúde, conhecido como eubiose, essa comunidade vive em equilíbrio, desempenhando funções vitais para o hospedeiro, como:

  • Auxílio na digestão de nutrientes.
  • Produção de vitaminas (notadamente do complexo B e K) e ácidos graxos de cadeia curta (AGCC).
  • Formação e manutenção da barreira intestinal e do epitélio.
  • Modulação do sistema imunológico.

A disbiose é o desequilíbrio na composição e/ou na quantidade desses microrganismos. Esse estado pode levar a uma série de condições, incluindo doenças inflamatórias intestinais, síndrome do intestino irritável (SII) e doenças metabólicas. SIBO, SIFO e IMO são formas específicas de disbiose.

1.2. Mecanismos de Proteção contra a Disbiose

O organismo possui múltiplos mecanismos de defesa para controlar o número e a composição da microbiota ao longo do TGI:

  • Acidez Gástrica: Cria uma barreira hostil à colonização bacteriana.
  • Secreções Biliares e Pancreáticas: Possuem propriedades bacteriostáticas.
  • Peristalse Anterógrada: A motilidade intestinal, especialmente o complexo motor migratório (CMM), "varre" os microrganismos em direção ao cólon.
  • Válvula Ileocecal Intacta: Impede o refluxo de conteúdo colônico rico em bactérias para o intestino delgado.
  • Imunidade Intestinal: A presença de imunoglobulinas, como a IgA secretora, e peptídeos antimicrobianos ajuda a manter o equilíbrio microbiano.

A falha em um ou mais desses mecanismos é o principal fator para o desenvolvimento de SIBO e SIFO.

2. Supercrescimento Bacteriano do Intestino Delgado (SIBO)

2.1. Definição e Critérios

SIBO é uma disbiose secundária ao aumento no número de bactérias e/ou à alteração do tipo de bactéria (presença de bactérias colônicas fermentativas) no intestino delgado. Os critérios diagnósticos quantitativos são:

  • Limiar Tradicional: ≥ 10⁵ unidades formadoras de colônias por mililitro (UFC/mL) em cultura de aspirado jejunal proximal.
  • Limiar Recente (Consenso): ≥ 10³ UFC/mL, especialmente se bactérias colônicas estiverem presentes, é agora considerado o padrão-ouro para aspirado duodenal.

O valor normal no duodeno e jejuno é de até 10³ - 10⁴ UFC/mL.

2.2. Fatores de Risco e Patofisiologia

Os fatores de risco para SIBO estão diretamente ligados à perda dos fatores protetores.

Categoria

Fatores de Risco Específicos

Anormalidades na Motilidade GI

Neuropatia autonômica (Diabetes), doenças do colágeno (esclerodermia), hipotireoidismo, gastroparesia, pseudo-obstrução intestinal, SII, uso crônico de opioides e fármacos que alteram a motilidade (antidepressivos tricíclicos, ISRS, agonistas de GLP-1/GIP).

Causas Estruturais/Anatômicas

Estenoses (Doença de Crohn), aderências, divertículos do intestino delgado, fístulas, ressecções gástricas, cirurgia bariátrica (bypass), ressecção da válvula ileocecal.

Anormalidades do Mecanismo Protetor

Hipocloridria (gastrite atrófica, uso crônico de Inibidores da Bomba de Prótons - IBPs), insuficiência pancreática exócrina, imunodeficiências (deficiência de IgA, HIV).

Relação Incerta ou Multifatorial

Doença celíaca, doença hepática, doença renal terminal, senilidade, obesidade severa, rosácea.

2.3. Quadro Clínico

Os sintomas são amplos e inespecíficos, sobrepondo-se a muitas outras desordens do TGI, o que atrasa o diagnóstico.

  • Sintomas Comuns: Distensão abdominal (bloating), meteorismo, dor ou desconforto abdominal, diarreia (com a associação mais forte), constipação, náuseas, perda de apetite.
  • Sintomas Sistêmicos: Fadiga, dores no corpo, "névoa mental" (brain fog).
  • Consequências de Casos Graves/Prolongados: Má absorção de nutrientes, levando a esteatorreia, perda de peso, hipoproteinemia, e deficiências de vitaminas lipossolúveis (A, D, E) e vitamina B12 e ferro (anemia).

Até 20% dos pacientes podem ser assintomáticos. A suspeita clínica deve ser alta em pacientes com patologias GI que não melhoram com tratamento otimizado e que apresentam fatores de risco.

2.4. Diagnóstico

Método

Descrição e Considerações

Aspirado e Cultura do Intestino Delgado

Padrão-ouro. É invasivo, caro e requer expertise microbiológica. Um limiar de ≥10³ UFC/mL no aspirado duodenal é o novo padrão de referência.

Teste Respiratório de Hidrogênio (e Metano)

Método de escolha inicial. É não invasivo e acessível. Utiliza-se substratos de glicose ou lactulose. <br> - Glicose: Mais específica para SIBO proximal. <br> - Lactulose: Pode detectar SIBO distal, mas tem maior taxa de falso-positivos devido ao trânsito intestinal variável. <br> Critério de Positividade: Aumento de hidrogênio (H₂) ≥20 ppm ou de metano (CH₄) ≥10 ppm em relação ao basal nos primeiros 90 minutos.

Prova Terapêutica

Iniciar o tratamento com antibióticos em pacientes com alta suspeita clínica, especialmente em áreas com acesso limitado a testes diagnósticos.

2.5. Tratamento

O objetivo é a indução da remissão, seguida da modificação da causa de base para prevenir recorrências.

  • Antibioticoterapia: É a base do tratamento. A Rifaximina é o antibiótico de primeira linha devido à sua ação local e perfil de segurança favorável.
  • Dieta: A dieta pobre em FODMAPs (oligossacarídeos, dissacarídeos, monossacarídeos e polióis fermentáveis) é recomendada para alívio sintomático, mas não deve ser mantida por mais de 6 semanas devido a potenciais impactos negativos na diversidade da microbiota.


A recorrência da SIBO é comum (até 43,7% em 9 meses), associada à idade avançada, uso crônico de IBPs e cirurgias prévias, destacando a importância de tratar a causa subjacente.

3. Supercrescimento Fúngico do Intestino Delgado (SIFO)

3.1. Definição e Microbiologia

SIFO é uma disbiose secundária ao crescimento excessivo de fungos no intestino delgado, associado a sintomas GI inexplicados.

  • Critério Diagnóstico: ≥ 10³ UFC/mL em cultura de aspirado do intestino delgado proximal (o valor normal é de até 10² UFC/mL).
  • Agente Mais Prevalente: Candida spp. é responsável por 97,4% dos casos, sendo a C. albicans a mais comum (83,8%).

3.2. Fatores de Risco

Os fatores de risco se sobrepõem significativamente aos da SIBO, com ênfase em condições que comprometem a imunidade.

  • Uso de Medicamentos: Quimioterápicos, imunossupressores, esteroides, antibióticos e IBPs.
  • Imunossupressão: Infecção pelo HIV, câncer, diabetes, desnutrição, pós-transplantes.
  • Outros Fatores: Hospitalização prolongada (especialmente em UTI), dismotilidade do intestino delgado (incluindo uso de agonistas GLP-1/GIP), gastrectomia, colectomia e alcoolismo crônico.

3.3. Quadro Clínico e Coexistência com SIBO

Os sintomas do SIFO são virtualmente indistinguíveis dos da SIBO, tornando o diagnóstico baseado apenas na clínica muito difícil. Uma pista clínica crucial é a falta de resposta à antibioticoterapia em um paciente com sintomas sugestivos de SIBO. Estudos indicam que SIBO e SIFO podem coexistir em até 34% dos casos. Em casos graves, pode ocorrer diarreia com sangue e erosões colônicas.

3.4. Diagnóstico e Tratamento

  • Diagnóstico: Atualmente, o único método validado é a cultura do aspirado do intestino delgado. Não há testes respiratórios ou outros métodos não invasivos estabelecidos. A cultura de fezes não é útil para o diagnóstico.
  • Tratamento:
    • Antifúngicos: O Fluconazol é a primeira escolha, com dose de 150 mg/dia por 2 a 3 semanas. Em casos de resistência, pode-se usar Itraconazol (100 mg/dia por 21 dias). A Nistatina não é indicada para SIFO.
    • Orientação Nutricional: Recomenda-se restringir o consumo de alimentos que elevam a glicemia e a adoção de uma dieta com redução de alimentos fermentáveis (FODMAP).


4. Supercrescimento Metanogênico Intestinal (IMO)

IMO é um termo mais recente para definir a superproliferação de arqueas produtoras de metano, como a Methanobrevibacter smithii, tanto no intestino delgado quanto no cólon.

  • Patofisiologia: As arqueas consomem o hidrogênio produzido por bactérias para gerar metano. O metano, por sua vez, demonstrou retardar o trânsito intestinal e está fortemente associado à constipação.
  • Diagnóstico: Teste respiratório com um aumento de metano (CH₄) ≥10 ppm em qualquer momento durante o teste.
  • Tratamento: A terapia de primeira linha é a combinação de Rifaximina (550 mg, 3x/dia) com Neomicina (500 mg, 2x/dia) por 14 dias. Essa combinação demonstrou uma taxa de erradicação de 87%, significativamente superior a qualquer um dos antibióticos isoladamente.

5. O Controverso Papel dos Prebióticos e Probióticos

5.1. Na Fase de Indução da Remissão (Tratamento Agudo)

A recomendação consensual de múltiplas fontes é clara:

  • SIBO: Prebióticos e probióticos não estão indicados e podem piorar os sintomas, como distensão e flatulência, por fornecerem mais substrato para as bactérias supercrescidas. O Consenso Brasileiro da FBG descreve o papel dos probióticos como "controverso", com evidências limitadas e de baixa qualidade para apoiar seu uso rotineiro. Um estudo inclusive sugere que o uso de probióticos pode causar SIBO e acidose D-lática.
  • SIFO: Prebióticos não estão indicados. Embora existam mecanismos teóricos pelos quais certos probióticos poderiam ser benéficos (ex: Lactobacillus produzindo peróxido de hidrogênio com ação antifúngica; Saccharomyces boulardii inibindo a adesão de Candida), não há diretrizes que recomendem seu uso no tratamento.

5.2. Uso como Adjuvante ou na Manutenção

Apesar da contraindicação na fase aguda, algumas pesquisas sugerem um papel potencial em cenários específicos, após a erradicação inicial:

  • Um estudo piloto mostrou que Saccharomyces boulardii foi eficaz como terapia adjuvante ao metronidazol no tratamento de SIBO em pacientes com esclerose sistêmica.
  • Outro estudo demonstrou benefício de um simbiótico (Bacillus coagulans + FOS) como tratamento de manutenção após o uso de antibiótico, com melhora significativa da dor abdominal, flatulência e diarreia.

Esses dados são preliminares e não sustentam uma recomendação generalizada, mas apontam para uma área que necessita de mais pesquisa.

6. Mensagens-Chave

  1. Diagnóstico Negligenciado: SIBO, e especialmente SIFO, são condições frequentemente subdiagnosticadas devido à natureza inespecífica dos sintomas. A suspeita clínica deve ser alta em pacientes com fatores de risco e sintomas gastrointestinais persistentes.
  2. SIFO como Diagnóstico Diferencial: Se um paciente com sintomas de SIBO não responde à antibioticoterapia, a possibilidade de SIFO deve ser fortemente considerada.
  3. Tratamento Direcionado: A terapia deve ser focada na erradicação do supercrescimento com agentes específicos (antibióticos para SIBO, antifúngicos para SIFO, combinação para IMO).
  4. Uso Cauteloso de Prebióticos e Probióticos: Na fase aguda de SIBO e SIFO, o uso desses suplementos é desaconselhado pela maioria das diretrizes e especialistas, pois pode agravar o quadro clínico. Seu papel na prevenção da recorrência ou como adjuvante permanece incerto e requer mais estudos.
  5. A Importância da Causa de Base: A alta taxa de recorrência ressalta que a erradicação do supercrescimento é apenas o primeiro passo. A identificação e o manejo da condição subjacente (ex: dismotilidade, anormalidade anatômica) são fundamentais para o sucesso do tratamento a longo prazo. 
Autores:
Dr. Frederico Lobo - Médico Nutrólogo - CRM-GO 13192 - RQE 11915
Dra. Christian Kelly Nunes Ponzo - CRM-ES 9683, RQE de Gastroenterologista: 6354, RQE de Nutrologia: 6355


Comentários