Uma data que não se apaga
Por quase 15 anos relutei em adentrar esse tema. Perdi meu pai em 10 de setembro de 2003 e ironicamente, no Dia Mundial de Prevenção do Suicídio. Foi um assunto espinhoso, cercado de silêncio e tabu. Escrevo com o coração apertado para que outras famílias não conheçam esse mesmo vazio.
Como nasceu o Setembro Amarelo
O Setembro Amarelo começou nos Estados Unidos, em 1994, após a morte por suicídio de Mike Emme, 17 anos. Talentoso, ele restaurou um Mustang 68, pintando-o de amarelo — daí o apelido “Mustang Mike”. Familiares e amigos não perceberam seu sofrimento psíquico a tempo. No velório, distribuíram cartões com fitas amarelas e a mensagem: “Se você precisar, peça ajuda.” O gesto se espalhou e o laço amarelo virou símbolo mundial de prevenção.
A campanha no Brasil: falar é necessário
Desde 2014, a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), em parceria com o Conselho Federal de Medicina (CFM), organiza nacionalmente a campanha Setembro Amarelo. Durante todo o mês, o objetivo é conscientizar, reduzir estigma e prevenir. Falar sobre suicídio com responsabilidade salva vidas.
O que vi na prática clínica
Ao longo dos anos, colecionei histórias dolorosas: médicos, familiares de colegas, amigos, profissionais de saúde, professores e alguns pacientes. Por isso, sempre rastreio ideação suicida nas consultas — às vezes pessoalmente, às vezes em questionários. A realidade surpreende: muita gente já pensou em morrer ao menos uma vez. Isso não significa que a pessoa irá morrer por suicídio, mas é um sinal de alerta que pede atenção imediata.
Números que doem
Segundo a OMS (2019), são registrados mais de 700 mil suicídios por ano no mundo — e o número real pode ser ainda maior por subnotificação. No Brasil, são aproximadamente 14 mil casos anuais, em média 38 mortes por dia. O impacto é imenso e atinge famílias, comunidades e serviços de saúde.
“Falar é a melhor solução” — e identificar é o primeiro passo
A campanha da ABP insiste: identificar ideações e falar com responsabilidade podem evitar a maioria dos atos. Informação de qualidade, acolhimento e acesso a tratamento reduzem risco e devolvem esperança.
Doenças mentais e o acesso ao cuidado
Grande parte dos casos envolve transtornos mentais — muitas vezes não diagnosticados ou tratados de forma inadequada. Após a pandemia, o cenário ficou mais desafiador para muita gente. Tratamento psiquiátrico e psicoterapia são pilares que salvam vidas; quando faltam, o sofrimento se aprofunda.
Escuta especializada: por que isso importa
Sim, falar importa e ouvir importa. Mas, em risco de suicídio, é crucial uma escuta especializada. Psicólogos e psiquiatras possuem formação, técnicas e protocolos para transformar a fala em cuidado terapêutico. Boas intenções nas redes sociais não substituem acompanhamento profissional.
Barreiras no caminho e o que precisa mudar
No SUS e na saúde suplementar, o acesso pode ser difícil e demorado. A ANS (2022) ampliou a cobertura de sessões para psicologia, fonoaudiologia, fisioterapia e terapia ocupacional em doenças listadas pela OMS — avanço importante, mas ainda insuficiente diante da demanda. Precisamos de mais serviços de saúde mental, menos filas e menos estigma.
Estigma não trata dor
Por motivos religiosos, morais e culturais, o suicídio foi por muito tempo encarado com culpa e julgamento. O resultado é silêncio e solidão para quem sofre. O comportamento suicida é multifatorial: envolve fatores psicológicos, biológicos (inclusive genéticos), culturais e socioambientais. É a consequência de um processo, não de um único evento.
Fatores protetores que salvam
- Ausência de doença mental ativa
- Autoestima fortalecida
- Bom suporte familiar e social
- Capacidade de adaptação e resolução de problemas
- Vínculo terapêutico positivo
- Emprego/ocupação, sentido existencial e participação religiosa/espiritual para quem valoriza
- Responsabilidade com a família e ter crianças em casa
- Pré-natal e cuidados de rotina bem feitos
Fatores de risco que exigem vigilância
- Abuso sexual na infância.
- Maus-tratos, violência, conflitos familiares, uso de substâncias, depressão, desempenho escolar ruim, bullying, incerteza sobre orientação sexual, exposição ao suicídio de pessoas próximas ou figuras públicas.
- Alta recente de internação psiquiátrica.
- Impulsividade/agressividade.
- Isolamento social (agravado na pandemia) e comportamentos antissociais.
- História familiar de tentativa ou morte por suicídio.
- Tentativa prévia (maior preditor individual).
- Transtornos mentais: depressão, bipolaridade, abuso/dependência de álcool e outras drogas, transtornos de personalidade, esquizofrenia, comorbidades múltiplas.
- Doenças clínicas graves/crônicas: câncer, HIV, doenças neurológicas (esclerose múltipla, Parkinson, Huntington, epilepsia), cardiovasculares (IAM, AVC), DPOC, doenças reumatológicas (como lúpus). Meses iniciais após o diagnóstico e sintomas refratários aumentam o risco.
O que cada um pode fazer hoje
- Buscar e seguir tratamento para doenças mentais.
- Ampliar vínculos com família e amigos.
- Reduzir/evitar álcool e outras drogas.
- Retomar atividades com significado (hobbies, voluntariado, espiritualidade).
- Construir um plano de segurança com seu(a) terapeuta/psiquiatra.
- Crises passam; com apoio certo, a vida pode reencontrar propósito e cor.
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