A verdade nua e cruel sobre aparência e sucesso



Ao longo de quase 20 anos de exercício da Medicina e tratando pessoas com obesidade, percebi que a vida, na atualidade, é implacável com elas. E faço questão de frisar “na atualidade” porque o significado do corpo sempre foi histórico e contextual. 

Em períodos de escassez, estar acima do peso simbolizava fartura, , status, poder e acesso a recursos. Em outros momentos, como na Grécia Antiga, corpos atléticos e funcionais representavam excelência, disciplina e virtude.

Ou seja: o corpo nunca foi neutro. Ele sempre comunicou algo sobre status, pertencimento e valor social. O que muda é o contexto.

E hoje, qual é o contexto?

Vivemos na era da abundância alimentar, da hiperdisponibilidade calórica, do sedentarismo estrutural e da estética amplificada por redes sociais. Nunca foi tão fácil engordar e nunca foi tão valorizado não ganhar. Nesse cenário, a obesidade deixa de ser interpretada como sinal de fartura e passa a ser lida, injustamente, como falha individual: falta de controle, disciplina ou autocuidado.

O corpo magro, funcional ou “em forma” tornou-se o símbolo contemporâneo de sucesso. Ele comunica de forma indireta:

  • Produtividade, 
  • Autocontrole, 
  • Energia, 
  • Saúde,
  • E até competência. 
Não por acaso, essas mesmas qualidades são exigidas pelo mercado de trabalho, pelas relações sociais e pelo ideal de vida moderna. O corpo virou um currículo silencioso. Seu cartão de visitas. Triste? Mas é a realidade. 

Por isso a vida é tão dura hoje com quem vive com obesidade. Não porque essas pessoas valham menos, ninguém teoricamente vale mais ou menos, mas porque o contexto atual penaliza aquilo que ele mesmo ajuda a produzir: o tecido adiposo. Criamos um ambiente obesogênico e ao mesmo tempo, um julgamento estético e moral implacável contra quem adoece dentro dele. Mesmo sabendo que uma vez dentro daquele círculo vicioso, as chances de sair dele só com dieta e atividade física são ínfimas. 

Cansei de falar sobre a neurobiologia da obesidade aqui no blog. Mas entender isso não é romantizar a obesidade, nem reforçar estigmas. É reconhecer que o sofrimento dessas pessoas não é apenas metabólico, mas social. E que, gostemos ou não, o corpo continua sendo uma linguagem. A diferença é que, no mundo atual, ele fala alto e cobra caro.

A meritocracia é mesmo real?

Cientificamente falando, meritocracia é uma grande bobagem. Ilusão de quem nega isso. Existe uma ideia confortável que muita gente gosta de repetir: quem se esforça vence, quem estuda cresce, quem é competente chega lá. Na teoria, parece bonito. Na prática, o mundo funciona de um jeito bem diferente. Injusto? Sim. Cruel? Também! Revoltante? Sim !

Quando observamos o comportamento humano sem filtros morais ou discursos politicamente corretos, uma verdade incômoda aparece com clareza: fatores fora do nosso controle, como a aparência física, influenciam profundamente as oportunidades que recebemos. Não é sobre justiça. É sobre realidade.

Este texto não é um julgamento nem um ataque, até porque o meu ganha pão é advindo desssa doença. É uma análise pragmática de como o sistema sórdido funciona e de como a forma física (shape) pode se tornar uma ferramenta estratégica para navegar em um mundo que, gostemos ou não, é profundamente preconceituoso. Infelizmente!

A beleza abre portas que o diploma não abre

Existe um capital invisível que antecede qualquer currículo: a aparência. Beleza, simetria, corpo dentro do padrão e sinais de autocuidado funcionam como um atalho social poderoso.

Pessoas acima do peso ou que passam uma imagem de desleixo são julgadas erroneamente rapidamente. Cruel? Sim, mas o mundo associa obesidade (na atualidade) a falta de disciplina, desorganização e até incompetência, mesmo que isso não seja verdade. E muitas vezes não é!

Em ambientes profissionais, isso se traduz em algo simples e brutal: uma pessoa menos qualificada, mas esteticamente agradável, muitas vezes sai na frente de alguém mais preparada. Isso é justo? Não! A pessoa é portadora de uma doença e é culpabilizada por isso. 

Isso não é exceção. É regra. Uma vez, ouvi de um professor uma frase que até hoje martela na minha cabeça: "A beleza abre portas que o diploma não abre". Você pode não gostar dessa frase. Pode discordar. Pode achar injusto. Mas isso não muda o fato de que ela descreve como o mundo real opera todos os dias. É assim que a banda toca e não será minha indignação que mudará essa injustiça.


O mundo é preconceituoso e recompensa padrões específicos

Vamos ser diretos: o mundo é preconceituoso. Ele não gosta do que foge ao padrão estético dominante. Pessoas consideradas “feias”, “fora de forma” ou “fora do padrão” enfrentam mais rejeição, menos convites, menos oportunidades e mais resistência em praticamente todas as áreas da vida.

Existe uma ideia implícita, nunca dita em voz alta, mas constantemente reforçada: A felicidade tem um padrão. E esse padrão é magro. Ou como diria uma influencer de Tiktok citada por uma paciente: "A felicidade é magra". 

Se a beleza funciona como moeda social e a sociedade associa beleza à magreza, a conclusão é óbvia: a magreza vira um passaporte social. Não é apenas uma característica física. É um facilitador de relações, acessos e oportunidades.

Meter o shape como estratégia, não como vaidade

Em algum momento da vida, muita gente faz uma autoavaliação honesta. Olha no espelho e percebe que não nasceu com a “skin do modo easy”. Não veio com o rosto privilegiado, com a genética que abre portas automaticamente. E aí, diante disso, existem duas opções:

Opção 1: Aceitar uma vida mais difícil.

Opção 2: Entender as regras do jogo e se adaptar.



A estratégia, nesse caso, não é virar atleta nem buscar um corpo irreal. É algo muito mais simples e pragmático: tentar atingir o peso ideal (mesmo sabendo que isso dificilmente acontecerá), um corpo funcional, um “corpo moderno”. Nada espetacular. Apenas suficiente para sair da zona de desvantagem estética. Lembro uma vez, um paciente arquiteto que após passar por turbulências emocionais, ganhou cercade 30kg em 2 anos. Ele me relatou que mesmo com toda fama conquistada, portfólio exemplar, viu portas se fechando e clientes contratando projetos de colegas que ele enxergava inferior, tecnicamente falando. 

Indignado com a situação ele procurou meu auxílio e traçamos estratégias que se adequassem à realidade dele. Resultado: perdeu 20kg. Ainda estavam 10kg e nunca esqueci quando em um dos retornos ele disse: "eu ainda não estou no shape, mas só das pessoas perceberem que emagreci, já me tratam diferente!". E isso foi um dos fatores que o estimulou a persistir no processo e até mesmo aceitar a necessidade da utilização de medicação, já que tinha preconceito.

Não é sobre perfeição. É sobre reduzir atrito. Facilitar a vida. Jogar com as cartas que estão na mesa. Dançar conforme a música. Por mais que odiemos o ritmo dessa música, a melodia ou a letra. 

Como o mundo muda quando você muda

O efeito da mudança corporal não é sutil. Ele é imediato. Quando a forma física melhora, o tratamento muda. As pessoas se tornam mais gentis. Convites aparecem. O olhar social suaviza. Situações que antes eram difíceis simplesmente deixam de existir. Igual aconteceu com o meu paciente que relatei. 

Quem passa por essa transformação percebe algo desconcertante: o mundo é radicalmente diferente para quem sai um pouco do lugar da rejeição estética. Muitas dificuldades não desaparecem por mágica, mas deixam de existir porque nunca tiveram relação com competência, e sim com aparência. Cruel? Muito!

E essa é a parte mais incômoda de aceitar: muitos dos obstáculos que hoje parecem enormes simplesmente somem quando você muda o corpo. Por isso sempre questiono a cada consulta que o paciente teve algum sucesso: o que você viu de melhora na sua vida? 

Mas nem tudo são transformações "milagrosas". Nesses anos à frente do ambulatório de Nutrologia, com centenas de pós-bariátricos, inúmeras vezes vi pacientes frustrados, pensando que quando chegassem ao peso ideal, a vida se transformaria em um mar de rosas. Sai obesidade, entra shape, portas se abrem, mas algumas sequer tem fechadura. E aí, só com muita psicoterapia! É comum, a não aceitação do novo corpo, dificuldade nas relações interpessoais, casamentos falidos, frustrações profissionais que foram escancaradas após se retirar "a grande desculpa" de cena. É comum a obesidade ser bode expiatório. 

Por isso reforço que em um tratamento de obesidade, a psicoterapia é crucial no processo. 

Conclusão: aceitar a realidade ou insistir na luta?

Vivemos em um sistema injusto. Isso é fato. Existe preconceito real, mensurável e diário contra quem foge do padrão estético dominante. Ignorar isso não torna o mundo melhor, apenas torna a vida mais difícil para quem decide ignorar. Quem insiste em lutar contra um sistema. E é válida a luta de quem briga contra o sistema. Pode ser que seja em vão? Talvez não. Está sendo assim com a compreensão sobre a obesidade. Há 20 anos a ignorância imperava quando o assunto era obesidade. A gordofobia médica (e de profissionais da saúde) era a regra. A ignorância era prevalente. Hoje já enxergamos obesidade com um olhar mais científico, humano. Mas a sociedade não. O sistema não ! 

Diante dessa realidade, a melhora da forma física deixa de ser vaidade e passa a ser estratégia de sobrevivência social. Uma forma prática de neutralizar uma desvantagem estrutural e simplificar a própria existência. Procurar tratamento. 

A pergunta final não é moral. É estratégica: Diante de um sistema cruel, injusto, revoltante, faz mais sentido lutar contra ele pagando o preço todos os dias ou aprender a jogar com as regras atuais enquanto elas ainda existem?


Autor: Dr. Frederico Lobo - Médico Nutrólogo - CRM-GO 13192 - RQE 11915 - Gostou do texto acima e quer conhecer mais sobre minha pratica clínica, clique aqui. 

Gostou deste conteúdo e quer se aprofundar em Nutrologia e saúde baseada em evidências?

Sou o Dr. Frederico Lobo, médico nutrólogo titulado pela ABRAN, e desde 2006 produzo conteúdo sobre nutrologia, alimentação, metabolismo, prevenção de doenças e medicina do estilo de vida. Acompanhe meus materiais nas outras plataformas

▶️ Canal no YouTube – vídeos de Nutrologia e saúde

🌐 Site Nutrólogo Goiânia – biblioteca de Nutrologia clínica

📘Site Dr. Frederico Lobo

📘 Blog Ecologia Médica – medicina, meio ambiente e nutrição

📷 Instagram


📲 Canal no WhatsApp (textos, vídeos e áudios diários)

🎧 Podcast para pacientes no Spotify

🎧 Podcast Movimento Nutrologia Brasil (atualização científica para médicos = conteúdo técnico)

📂 Grupo NUTRO PDFs no Telegram (exclusivo para médicos = conteúdo técnico)


Comentários