Processamento Alimentar e Saúde: Uma Visão Crítica sobre os Ultraprocessados




Nunca se falou tanto sobre o impacto dos ultraprocessados na saúde humana. A cada década um alimento ou macronutriente é demonizado. Ovo, Leite, Glúten, farinhas, lipídios, carboidratos, proteínas. Precisamos arrumar um culpado. 

Os ultraprocessados aguardaram o julgamento por anos, recentemente foram condenados. Mas por que ? Serão que todos ultraprocessados são criminosos?

A complexidade do debate sobre alimentos ultraprocessados


Os alimentos ultraprocessados tornaram-se protagonistas na discussão sobre saúde e alimentação na última década. Embora frequentemente demonizados, é fundamental compreender que nem todos representam o mesmo risco ou impacto metabólico. 

A demonização indiscriminada ignora o contexto alimentar, a composição nutricional e o perfil de consumo populacional. Toda generalização é burra e aqui cabe essa afirmação. 

O verdadeiro desafio está em distinguir entre produtos ultraprocessados de baixa qualidade e aqueles que podem, sob determinadas circunstâncias, contribuir para uma dieta equilibrada. 

Essa diferenciação é essencial para evitar simplificações que empobrecem o debate científico e prejudicam políticas públicas baseadas em evidências.

A classificação NOVA: avanços, limitações e controvérsias

Criada pelo professor Carlos A. Monteiro, a classificação NOVA revolucionou a forma de analisar a alimentação humana, ao priorizar o grau de processamento em vez de apenas nutrientes isolados.

Contudo, como toda proposta conceitual ampla, apresenta limitações. A fronteira entre o que é “processado” e “ultraprocessado” nem sempre é nítida, o que gera confusões práticas. 

NOVA 1: alimentos naturais ou minimamente processados (frutas, legumes, carne fresca, ovos, leite, castanhas etc.). Que devem compor majoritariamente a nossa dieta. 

NOVA 2: ingredientes culinários processados (óleos, manteiga, sal, açúcar, farinha). Podem ser utilizados em pequenas porções diariamente. 

NOVA 3: alimentos processados (como queijos, pães tradicionais, alimentos em conserva). Também podem ser incorporados a nossa dieta em pequenas porções diariamente. 

NOVA 4: ultraprocessados, produtos industriais com aditivos, formulações prontas e grau alto de intervenção industrial

Aqui que entra a polêmica e terei que ser advogado do diabo. Pães integrais com conservantes, iogurtes com aditivos e bebidas vegetais industrializadas, por exemplo, entram na categoria NOVA 4, ainda que tenham perfis nutricionais favoráveis. 

Essa rigidez classificatória levanta questionamentos sobre a real aplicabilidade do modelo em contextos clínicos e populacionais. Tenho orgulho dessa classificação ser brasileira e modelo para o mundo, mas cabe o debate. 

A subjetividade na definição de ultraprocessado


Critérios como presença de aditivos, praticidade ou formulação industrial podem ser úteis para identificar padrões de consumo, mas nem sempre refletem o impacto metabólico ou inflamatório real de um alimento. 

Um pão artesanal pode conter emulsificantes, mas isso o torna necessariamente prejudicial? Não sabemos. Trabalho com intolerâncias alimentares, problemas digestivos e para uma parcela da população, um determinado emulsificante pode ser preudicial. Para outras pessoas não. Ou seja, um determinado aditivo pode ser deletério para uma pequena parcela da população, mas para outra não. Somente o tempo nos mostrará quais realmente são seguros. E aqui vale uma ressalva, existe a indústria alimentícia, que tem como objetivo fornecer alimentos saborosos, com bom perfil nutricional (nem sempre rs), mas que o objetivo final é o lucro. Ou seja, ao analisarmos isso, devemos ter cautela.  

Da mesma forma, um suplemento proteico utilizado em contextos hospitalares é classificado como ultraprocessado, embora desempenhe papel terapêutico relevante. 

Outro exemplo é o Whey protein. Quando na versão isolado puro, sem adoçantes, corantes ou aromatizantes, poderia ser interpretado por alguns autores como um ingrediente processado (NOVA 2), pois é derivado do soro do leite e passa por separação física, sem formulação complexa. É o que eu utilizo e recomendo para os meus pacientes. Ou seja, recomendo o hidrolisado, pois, é o que eu uso. Porém, é bem mais caro. Em um contexto de saúde publica levarei em contato não só a composição, mas também o custo do produto alimentício. 

Já a maioria dos produtos comerciais (whey concentrado, isolado ou hidrolisado saborizados) contém aditivos, espessantes, emulsificantes e edulcorantes, o que enquadra esses produtos na categoria NOVA 4 (ultraprocessados).

A abordagem científica deve reconhecer essas nuances e evitar o reducionismo binário que opõe “natural” e “industrial” como se fossem categorias morais, e não nutricionais.

Exemplo prático: idoso atendido no ambulatório de Nutrologia, sarcopênico, desnutrido, com baixa força muscular e sem condições de comprar um whey hidrolisado ou isolado mais puro. É ético eu privá-lo da prescrição de um produto mais barato (whey concentrado com aditivos), que vai ajudá-lo a recuperar a massa muscular, melhorar a desnutrição e força muscular? Não. No mundo ideal a prescrição seria: whey hidrolisado. No mundo real whey concentrado ou até mesmo albumina ou blends de proteínas (que são mais baratos). 

Evidências epidemiológicas e o consumo excessivo


Estudos observacionais têm mostrado correlação entre alto consumo de ultraprocessados e maior mortalidade por doenças cardiovasculares, obesidade e síndrome metabólica. 

Mas é preciso considerar o contexto: essas associações tendem a se fortalecer em populações que consomem grandes quantidades de refrigerantes, snacks e carnes processadas. 

Quando ajustadas por padrão alimentar e nível socioeconômico, as associações se atenuam, sugerindo que o problema central não está no processamento em si, mas no padrão alimentar global. A ciência caminha, portanto, para uma visão mais equilibrada e contextualizada do impacto dos ultraprocessados.

Exemplo: Café da manhã composto por pão francês, manteiga, queijo, ovos e café. 


Analisando os itens:

O pão francês tradicional (feito apenas com farinha de trigo, água, sal e fermento biológico) é classificado como um alimento processado NOVA 3, seria o pão feito como em casa, com ingredientes básicos e sem aditivos. Mas o que a maioria ingerirá será o NOVA 4 (ultraprocessado): pão de fabricação industrial com ingredientes que não seriam usados em uma cozinha doméstica. 

Ele será um veículo para o paciente comer junto com o ovo (in natura) e com queijo

A linha divisória entre o queijo processado e o ultraprocessado está na presença de ingredientes não culinários e no propósito do processamento. 

Por exemplo queijos feitos apenas com leite, fermento, coalho e sal são processados, não ultraprocessados, mesmo que passem por maturação ou fermentação complexa. Ou seja, NOVA 3.  Já produtos com aditivos estabilizantes, emulsificantes e gordura vegetal entram na categoria ultraprocessada (NOVA 4), pois são formulações industriais destinadas a otimizar textura, sabor e conservação, e não apenas a preservar o alimento.

Então o queijo feito pela sua vó na fazenda é um processado? Sim. Ela processou. É saúdável? Dá para acrescentar no pão (NOVA 4) e com o ovo? Sim. É o ideal? Não, mas é o que temos para uma boa parte da população.  É o que será menos deletério talvez. 

Estudos observacionais indicam que o consumo moderado de queijos naturais (especialmente os maturados e integrais) não aumenta o risco cardiovascular e pode estar associado a menor incidência de diabetes tipo 2 e hipertensão. Isso se deve ao teor de cálcio, proteínas de alta qualidade, vitamina K2 (menaquinonas) e peptídeos bioativos formados durante a fermentação.

Já os queijos ultraprocessados, ricos em sódio, gordura vegetal e aditivos, podem contribuir para inflamação de baixo grau, resistência insulínica e aumento da pressão arterial, especialmente em dietas ocidentais com alta densidade calórica.

Mecanismos fisiológicos e comportamentais envolvidos


A hiperpalatabilidade, combinação precisa de gordura, açúcar e sal, estimula os circuitos dopaminérgicos do prazer, promovendo consumo excessivo. Além disso, a textura e a densidade energética de muitos ultraprocessados reduzem o tempo de mastigação e atrasam os sinais de saciedade, levando a maior ingestão calórica. 

Estudos controlados mostram que indivíduos em dietas isocalóricas, mas com maior presença de ultraprocessados, consomem espontaneamente cerca de 500 kcal a mais por dia. Essa diferença cumulativa, ao longo de semanas ou meses, impacta diretamente o ganho de peso e os marcadores metabólicos.

Impactos nutricionais e metabólicos comprovados


A composição dos ultraprocessados costuma apresentar baixo teor de fibras e proteínas e alta densidade calórica, o que favorece inflamação subclínica e disbiose intestinal. Alimentos com alto índice glicêmico elevam rapidamente a insulina plasmática, promovendo lipogênese e resistência insulínica. 

Paralelamente, a escassez de micronutrientes e compostos bioativos antioxidantes prejudica a função mitocondrial e o equilíbrio redox. 

No entanto, nem todos os ultraprocessados se encaixam nesse perfil: versões enriquecidas com fibras, proteínas vegetais e gorduras insaturadas podem mitigar parte desses efeitos deletérios, reforçando a importância de avaliar caso a caso. Novamente reafirmo: toda generalização é burra. 

Contexto social e desigualdade alimentar


A discussão sobre ultraprocessados também é uma questão de equidade. Em muitas regiões, o acesso a alimentos frescos é limitado, e produtos industrializados tornam-se a principal fonte de energia e micronutrientes. 

Políticas que simplesmente demonizam ultraprocessados podem agravar desigualdades, especialmente entre populações de baixa renda. O ideal é que todos tivessem uma dieta majoritariamente composta por "comida de verdade". Alimentos in natura e com o mínimo de processamento. Isso deve ser estimulado através de políticas de saúde pública e o desafio delas é promover educação nutricional e rotulagem clara, sem criar barreiras intransponíveis à alimentação adequada. A mensagem deve ser de moderação e escolha consciente, não de exclusão absoluta.

Aqui entra a literácia alimentar, na qual o paciente aprende a ler rótulos, entende como fazer boas escolhas. Se enxerga em um contexto social, mas também suas particulariades (ex. é alguém com doença inflamatória intestinal ou um diabético... ou é alguém com alergia a alimentar e sensibilidade a aditivos). Ou seja, é alguém com particularidades (patologias) ou é o tio da banca de jornal que acorda 4:30 para trabalhar, pedala 10km até chegar na banca, almoça a marmita que a esposa faz, não tem patologias e não sente nada ao lanchar um pão NOVA 4 com muçarela, que a esposa colocou na lancheira térmica... 

O papel dos profissionais de saúde


Médicos e nutricionistas desempenham papel estratégico na tradução de evidências para a prática clínica. É preciso ir além do discurso moralista e oferecer ao paciente orientações personalizadas, considerando contexto socioeconômico, estilo de vida e preferências individuais. 

A recomendação de reduzir ultraprocessados deve vir acompanhada de alternativas práticas e culturalmente adequadas. Mais do que condenar alimentos, o foco deve ser em reconstruir o comportamento alimentar e promover autonomia nutricional com base em evidências, não em modismos.

O futuro da indústria e da formulação alimentar


A indústria alimentícia tem respondido à pressão científica e popular reformulando produtos. A redução de açúcares, gorduras trans e sódio, aliada à inclusão de fibras, proteínas vegetais e compostos bioativos, representa uma tendência de “reprocessamento saudável”. Lembre-se, ela não é uma indústria santa! São empresas que visam lucro e só se adaptam por pressão do mercado (ciência e população). 

Tais avanços devem ser reconhecidos, desde que acompanhados de transparência e monitoramento rigoroso. A colaboração entre pesquisadores, profissionais de saúde e indústria pode gerar inovações que conciliem praticidade e qualidade nutricional, beneficiando o consumidor final e reduzindo o impacto dos ultraprocessados negativos.

Mas o veredicto está dado, toda generalização é burra, os ultraprocessados estão julgados e condenados. Cabe ao médicos e/ou nutricionista ter senso crítico, olhando de forma individual cada caso. 

E eu? Eu voto pela manutenção da condenação, em prol da saúde da população. Mas também sou advogado do diabo e tento ter senso crítico; 

Autor: Dr. Frederico Lobo - Médico Nutrólogo - CRM-GO 13192 - RQE 11915 - Gostou do texto e quer conhecer mais sobre minha pratica clínica (presencial/telemedicina), clique aqui. 


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