[Conteúdo técnico para médicos] - Abordagem do paciente jovem do sexo masculino que faz uso abusivo de andrógenos: redução de danos como estratégia clínica

Resumo

O uso não médico de andrógenos é cada vez mais observado na prática clínica, particularmente entre homens jovens que praticam treinamento de força. Muitos procuram atendimento com queixas ou complicações relacionadas aos andrógenos, mas recebem suporte médico limitado devido à falta de familiaridade dos profissionais, ao estigma ou à percepção de que a abstinência deve ser uma condição para o cuidado. Este artigo apresenta um modelo para a abordagem clínica de usuários abusivos de andrógenos, enfatizando uma avaliação diagnóstica não julgadora e duas estratégias de manejo em paralelo.

Para indivíduos motivados a interromper o uso, o monitoramento estruturado e o suporte psicológico são fundamentais para facilitar a recuperação hormonal e reduzir o risco de recaída. Apenas nos casos em que o hipogonadismo bioquímico, associado a sintomas, persista após pelo menos 12 meses de abstinência, a terapia de reposição de testosterona deve ser considerada, de acordo com as diretrizes padrão.

Para aqueles que não estão dispostos ou ainda não se sentem prontos para interromper o uso, propõe-se uma abordagem de redução de danos. Com base em ampla experiência clínica, são apresentadas recomendações para minimizar os riscos à saúde, incluindo redução de dose, escolha dos compostos, estruturação dos ciclos e manejo do risco cardiovascular. Essa estratégia dupla — apoiar a cessação quando possível e mitigar os danos quando não — oferece uma resposta realista e ética à crescente população de usuários abusivos de andrógenos e busca reduzir a lacuna atual entre o cuidado clínico e o comportamento dos usuários.

Vinheta clínica

Um homem de 28 anos procura o endocrinologista com queixas de fadiga, sudorese noturna e sensibilidade mamária. Ele relata uso abusivo de andrógenos de longa data, tendo evoluído ao longo dos anos de ciclos de 12 semanas para um regime contínuo de “blast and cruise” ininterrupto há 6 anos. Seu ciclo atual inclui enantato de testosterona e acetato de trembolona. Ele também iniciou por conta própria o uso de telmisartana em resposta a leituras domiciliares consistentemente elevadas de pressão arterial. 

Recentemente, adicionou GH ao seu protocolo.

Ao exame físico, apresenta-se magro e extremamente musculoso, com ginecomastia leve; o tecido mamário é doloroso à palpação. Os exames laboratoriais mostram níveis indetectáveis de LH e FSH, concentração muito elevada de testosterona, hematócrito elevado, elevação das transaminases hepáticas e dislipidemia. O paciente procura orientação médica devido à fadiga persistente e em relação à ginecomastia.

Esse caso ilustra um cenário relativamente comum: clínicos, especialmente em ambientes ambulatoriais, têm encontrado cada vez mais homens que utilizam drogas para melhora de desempenho e aparência física (performance- and image-enhancing drugs – PIEDs) sem supervisão médica. Esses indivíduos geralmente buscam aconselhamento médico apenas para monitoramento geral da saúde ou diante de sintomas que despertam preocupação. A maioria dos profissionais de saúde não domina a farmacologia dos andrógenos e reluta em se envolver com esses pacientes — não apenas por falta de conhecimento, mas também por desaprovação moral do uso de PIEDs.

Os sintomas frequentemente são atribuídos ao abuso de andrógenos, mesmo quando a relação causal é pouco plausível, e a recomendação padrão é a interrupção do uso. Frustrados pela escassez de apoio médico ou de compreensão, muitos usuários recorrem a treinadores, fóruns on-line e fontes não regulamentadas em busca de orientação, frequentemente se automedicando e mantendo o uso de andrógenos apesar dos riscos à saúde. Como resultado, pacientes e médicos passam a atuar em mundos paralelos e desconectados, com pouca compreensão mútua e progresso limitado na promoção da saúde.

Os endocrinologistas precisam de um arcabouço prático para manejar usuários de andrógenos de forma clinicamente responsável e não julgadora, o que será delineado neste artigo. O foco será nos usuários do sexo masculino, que representam a grande maioria dos casos de abuso encontrados na prática endocrinológica de rotina.

Contexto

Os esteroides anabolizantes androgênicos, ou simplesmente andrógenos, são a testosterona e seus derivados sintéticos. Eles são frequentemente utilizados fora do contexto médico para hipertrofia muscular, melhora do desempenho, elevação do humor ou supostos ganhos no bem-estar. Compreender os padrões de uso é essencial para uma avaliação clínica adequada e para o aconselhamento apropriado sobre riscos, sendo as três formas mais comuns.

  • Ciclagem intermitente, envolvendo doses suprafisiológicas por 8 a 16 semanas (ou mais), seguidas por um período sem uso;
  • Terapia de reposição de testosterona (TRT), frequentemente iniciada sem indicação médica e em doses acima das fisiológicas — tipicamente 150 a 300 mg de testosterona por semana, em vez de 75 a 100 mg, que é considerado medicamente apropriado;
  • Protocolo “blast and cruise”, no qual os ciclos são seguidos por doses mais baixas de “manutenção”, levando, na prática, à supressão prolongada da produção endógena de testosterona.

Embora o abuso de andrógenos tenha sido inicialmente restrito a atletas competitivos, hoje é cada vez mais observado entre praticantes recreacionais de treinamento de força. Estimativas recentes sugerem que a prevalência global ao longo da vida do abuso de andrógenos seja de 6,4% em homens e 1,6% em mulheres. Na Holanda, um relatório de 2023 encontrou que mais de 20% dos frequentadores regulares de academias haviam utilizado andrógenos no último ano — um aumento drástico em comparação com dados anteriores. Esses números evidenciam a crescente magnitude do problema e sua relevância para a prática clínica de rotina.

Além do desejo por melhora da composição corporal, especialmente homens mais velhos são atraídos pela TRT por seus supostos efeitos positivos sobre energia, humor e desempenho sexual. Clínicas comerciais de “testosterona” atualmente frequentemente prescrevem doses relativamente altas de testosterona a homens sem um diagnóstico bem estabelecido de hipogonadismo. Quando médicos se recusam a prescrever testosterona na ausência de indicação médica, alguns pacientes recorrem a fontes ilícitas e iniciam o tratamento por conta própria, orientados por fóruns on-line que tendem a promover esquemas de doses suprafisiológicas.

Consequências do abuso de andrógenos para a saúde

O uso de andrógenos em altas doses está associado a uma ampla gama de efeitos adversos de curto prazo, incluindo acne, ginecomastia, atrofia testicular, alterações de humor e elevação da pressão arterial. Ao mesmo tempo, usuários que praticam treinamento de resistência podem experimentar aumentos rápidos de massa muscular, além de aumento da libido e, frequentemente, elevação do humor. 

Alterações laboratoriais possíveis incluem eritrocitose, dislipidemia e elevação das transaminases hepáticas, particularmente com andrógenos orais alquilados.

Alterações cardiovasculares, como hipertrofia ventricular esquerda e comprometimento das funções diastólica e sistólica, já foram descritas e podem contribuir para o risco aumentado de morte súbita cardíaca em fisiculturistas.

Após a interrupção do uso, a maioria dos efeitos de curto prazo se resolve em poucos meses. No entanto, muitos usuários apresentam hipogonadismo transitório decorrente da supressão do eixo hipotálamo–hipófise–gonadal (HPG). Os sintomas podem incluir fadiga, redução da libido e humor deprimido. Embora a recuperação hormonal seja tipicamente espontânea, ela pode ser retardada — especialmente após uso prolongado — e, ocasionalmente, permanecer incompleta. Essa condição é denominada hipogonadismo prolongado pós-abuso de andrógenos (prolonged post-androgen abuse hypogonadism – PPAAH).

A complicação de longo prazo mais preocupante do abuso de andrógenos é o aumento do risco cardiovascular. 

Usuários de andrógenos apresentam maiores taxas de aterosclerose precoce, infarto do miocárdio, arritmias e insuficiência cardíaca.

Os mecanismos propostos incluem hipertensão arterial, dislipidemia, eritrocitose e disfunção endotelial. O risco cardiovascular parece correlacionar-se com a exposição cumulativa aos andrógenos — medida em anos de uso em doses suprafisiológicas.

Esse conceito é comparável aos “anos-maço” no tabagismo e pode auxiliar na estratificação clínica do risco.

Muitos efeitos colaterais do abuso de andrógenos, incluindo alterações cardíacas, parecem reversíveis após a interrupção do uso. No entanto, a melhora clínica não implica necessariamente recuperação completa. Resultados laboratoriais ou de imagem normais podem transmitir uma falsa impressão de segurança, especialmente quando o uso em doses suprafisiológicas é mantido. Os endocrinologistas devem estar atentos ao fato de que essas investigações, embora informativas, podem inadvertidamente reforçar a continuidade do uso de andrógenos ao fornecer uma sensação enganosa de segurança.

Desafios éticos e práticos

A prevalência crescente do abuso de andrógenos representa um desafio clínico cada vez maior. 

Tradicionalmente, os médicos adotaram uma postura cautelosa ou reservada: a menos que o paciente se comprometa com a interrupção do uso, o envolvimento médico costuma ser limitado ou até mesmo totalmente negado. Alguns especialistas defendem que esse distanciamento ainda é apropriado, argumentando que oferecer cuidado na ausência de abstinência pode, inadvertidamente, legitimar ou perpetuar o comportamento.

No entanto, na prática clínica, endocrinologistas se deparam cada vez mais com indivíduos que utilizam andrógenos apesar de riscos claros à saúde e para os quais a interrupção imediata não é um objetivo realista. Nesse contexto, um número crescente de clínicos defende uma estratégia pragmática focada na redução de danos — oferecendo orientação médica estruturada com o objetivo de minimizar prejuízos evitáveis, mesmo quando a abstinência ainda não é alcançável. Essa abordagem não endossa o abuso de andrógenos, mas reconhece a realidade do uso continuado e busca promover a saúde e o engajamento do paciente dentro desse contexto.

Embora existam opiniões divergentes sobre essa estratégia, defendemos que a redução de danos oferece uma forma médica e eticamente defensável de se engajar com uma população vulnerável e historicamente pouco assistida.

Nas seções a seguir, delineamos um arcabouço clínico prático para a abordagem de usuários abusivos de andrógenos. Esse processo se inicia com a avaliação diagnóstica e a estratificação de risco. Embora a interrupção do uso de andrógenos permaneça o objetivo preferencial, também apresentamos um modelo pragmático de cuidado para orientar os clínicos quando os pacientes optam por continuar o uso.

Abordagem diagnóstica

O manejo de pacientes que utilizam andrógenos começa com um processo diagnóstico minucioso e respeitoso. Em alguns casos, os pacientes revelam abertamente o uso de andrógenos logo no início e podem até citá-lo como o principal motivo da consulta. No entanto, não é incomum que indivíduos se apresentem com sintomas relacionados ao abuso de andrógenos sem reconhecer imediatamente esse uso, muitas vezes por medo de estigmatização ou preconceito. Quando há suspeita razoável de abuso de andrógenos não declarado, é apropriado aprofundar a investigação. É fundamental que essas conversas sejam conduzidas com uma postura aberta e não julgadora, reconhecendo que todos os pacientes merecem cuidado e respeito iguais, independentemente da causa subjacente de sua condição. Exemplos de como os clínicos podem abordar o tema do abuso de andrógenos de maneira sensível e imparcial são apresentados na Tabela 1.

Embora seja certamente possível que um indivíduo visivelmente muito musculoso esteja usando ou tenha usado andrógenos recentemente, os clínicos devem estar cientes de que o abuso de andrógenos frequentemente não é aparente do ponto de vista físico. De fato, ele pode ser oculto, e alguns usuários podem não parecer particularmente musculosos — ao contrário, podem até estar com sobrepeso ou obesidade, utilizando andrógenos apenas para se tornarem mais magros. Um indicador confiável é que quase todos os usuários praticam algum tipo de treinamento de força regular, seja por motivos estéticos (por exemplo, fisiculturismo) ou de desempenho (por exemplo, modalidades strongman).

Alguns achados — embora não exclusivos do abuso de andrógenos — podem ser altamente sugestivos no contexto adequado. Em especial, gonadotrofinas indetectáveis ou marcadamente suprimidas em um homem jovem, por outro lado saudável, que completou a puberdade (e possivelmente já teve filhos) são fortemente indicativas de exposição exógena a andrógenos. De forma semelhante, ginecomastia de início na idade adulta ou acne — especialmente acne truncal — devem levantar suspeita. SHBG suprimida, eritrocitose e dislipidemia com redução do colesterol de lipoproteína de alta densidade (HDL) podem reforçar o diagnóstico. É importante destacar que os níveis de testosterona total podem parecer enganosamente normais ou até baixos e não devem ser utilizados isoladamente para confirmar ou excluir a possibilidade de abuso de andrógenos.

Uma vez que o abuso de andrógenos tenha sido revelado, deve-se obter uma anamnese direcionada para estimar a exposição cumulativa e avaliar riscos potenciais à saúde. Aspectos relevantes incluem duração e frequência do uso (por exemplo, uso cíclico versus contínuo), doses semanais estimadas e tipos de compostos utilizados, com atenção à distinção entre preparações injetáveis e orais. 

Deve-se também investigar o uso de outros agentes para melhora de desempenho, como GH, insulina, clembuterol ou hormônios tireoidianos. Os pacientes podem relatar automedicação com moduladores seletivos do receptor de estrogênio, inibidores da aromatase ou gonadotrofina coriônica humana (hCG). Naqueles que utilizam ciclos intermitentes, a chamada “terapia pós-ciclo” (post-cycle therapy – PCT) com esses agentes é por vezes empregada para auxiliar a recuperação hormonal.

O exame físico deve incluir aferição da pressão arterial e avaliação de acne e ginecomastia. O tamanho testicular pode ser informativo, embora sua interpretação seja limitada na ausência de medidas prévias. A consistência à palpação pode ajudar na diferenciação: testículos flácidos sugerem atrofia adquirida, enquanto testículos pequenos e firmes apontam para hipogonadismo congênito. As investigações laboratoriais devem incluir hemograma completo, perfil lipídico, provas de função hepática e avaliação da função renal; a cistatina C é preferível à creatinina para o cálculo da taxa de filtração glomerular estimada. Se houver preocupação com fertilidade, deve-se realizar análise seminal. Em casos selecionados, uma avaliação cardíaca adicional — como eletrocardiograma ou ecocardiograma — pode ser considerada, especialmente em indivíduos com doses elevadas nos ciclos, uso prolongado de andrógenos ou sintomas relevantes. Métodos de rastreamento mais avançados, como a espessura médio-intimal da carótida ou a pontuação de cálcio coronariano, devem ser reservados para pacientes com múltiplos fatores de risco e exposição cumulativa substancial. Embora tais exames não sejam rotineiramente indicados, achados anormais podem, por vezes, servir como momentos decisivos para motivar a redução de dose ou a interrupção do uso, especialmente em pacientes que, de outra forma, relutariam em parar.

Após completar a história de abuso de andrógenos e avaliar os efeitos associados à saúde, o clínico deve investigar sinais de dependência psicológica ou comportamental. Indicadores podem incluir autoimagem negativa ou traços de dismorfia corporal, uso prolongado ou progressivamente crescente de andrógenos e uso concomitante de outras substâncias ilícitas. Um aspecto central da avaliação clínica é determinar a prontidão do paciente para mudar o comportamento e sua motivação para interromper o abuso de andrógenos, pois isso orienta a estratégia de manejo mais apropriada. Alguns indivíduos podem buscar explicitamente orientação médica para cessar o uso, enquanto outros podem solicitar principalmente tranquilização ou aconselhamento sobre como minimizar riscos à saúde.

Estratégia de manejo

A. Para pacientes dispostos a interromper o uso

Uma vez que o paciente expressa motivação para interromper o abuso de andrógenos, o principal desafio passa a ser o manejo dos sintomas de abstinência, em particular o PPAAH. Em alguns homens, a perda concomitante de massa muscular também pode ser vivenciada como muito angustiante. Quando os sintomas são intensos ou quando a tolerância individual a eles é baixa, há uma forte tendência à retomada do abuso de andrógenos. O risco de PPAAH aumenta conforme a duração e a intensidade da exposição prévia aos andrógenos, e pode ser ainda influenciado pela idade e por dificuldades enfrentadas em tentativas anteriores de cessação. Quando pertinente, o encaminhamento para suporte psicológico pode complementar o manejo médico e reduzir o risco de recaída.

Embora a recuperação do eixo HPG ocorra espontaneamente em muitos casos, esse processo costuma ser mais lento do que os usuários esperam. Esse descompasso entre expectativas e a trajetória real de recuperação contribui para recaídas precoces. Alguns indivíduos consideram a chamada terapia pós-ciclo (PCT) na tentativa de estimular a produção endógena de testosterona, mas as evidências que sustentam a PCT permanecem fracas e predominantemente anedóticas. Além disso, a PCT não é isenta de riscos, pois terapias redutoras de estrogênio podem prejudicar a função sexual, e o hCG pode retardar a recuperação central por meio de feedback negativo persistente. Assim, a estimulação farmacológica rotineira do eixo HPG não é recomendada. Em vez disso, o monitoramento estruturado e o cuidado de suporte são preferíveis nos primeiros meses após a interrupção, uma vez que a maioria dos homens se recupera gradualmente sem intervenção.

Se o hipogonadismo bioquímico, associado a sintomas, persistir após pelo menos 12 meses de abstinência, uma investigação diagnóstica adicional é indicada, e a TRT médica pode ser iniciada de acordo com as diretrizes padrão, desde que níveis séricos consistentemente baixos de testosterona sejam confirmados e causas alternativas de hipogonadismo sejam excluídas. Esse limiar de 12 meses baseia-se em estudos que sugerem que a maioria dos homens se recupera dentro desse período, embora em alguns casos a recuperação possa levar mais tempo. Durante o tratamento, recomenda-se monitoramento regular dos níveis de testosterona, hematócrito, pressão arterial, perfil lipídico e funções hepática e renal.

O risco cardiovascular deve ser avaliado e manejado conforme estratégias estabelecidas de prevenção primária, levando em consideração a exposição prévia aos andrógenos. Os clínicos devem permanecer atentos a doses suprafisiológicas, uso não declarado de andrógenos e expectativas irreais.

Em homens que desejam preservar ou alcançar a paternidade biológica, a TRT é contraindicada, pois a testosterona exógena suprime a secreção de gonadotrofinas e, consequentemente, compromete a espermatogênese. Caso oligozoospermia ou azoospermia persista por mais de 12 meses após a interrupção dos andrógenos, alguns autores defendem o uso de hCG, citrato de clomifeno, inibidores da aromatase ou FSH recombinante para estimular a espermatogênese. No entanto, faltam evidências robustas, e essas abordagens devem ser consideradas experimentais. Assim, recomenda-se uma conduta expectante vigilante, uma vez que a recuperação espontânea da fertilidade pode ocorrer após mais de 1 ano, e a elevação progressiva de LH e FSH pode ser utilizada como sinal tranquilizador de recuperação testicular. Se a fertilidade permanecer comprometida apesar da normalização bioquímica, está indicado o encaminhamento para um especialista em reprodução humana.

* B. Redução de danos para pacientes que não desejam interromper

Na prática clínica, alguns pacientes não estão dispostos ou ainda não se sentem prontos para interromper o uso de andrógenos. Nesses casos, vale a pena explorar as razões subjacentes a essa relutância — como expectativas irreais de desempenho, psicopatologia subjacente ou uma percepção de desequilíbrio entre os custos e os benefícios da interrupção — pois isso pode orientar uma intervenção mais individualizada, incluindo o estabelecimento de metas realistas e o enfrentamento de fatores psicológicos ou sociais contribuintes. O clínico pode então considerar uma abordagem pragmática de redução de danos, com o objetivo de minimizar os riscos à saúde mantendo o vínculo terapêutico. Embora as evidências para intervenções específicas nesse contexto ainda sejam limitadas, alguma orientação prática pode ser necessária, dada a frequência crescente com que esses pacientes se apresentam na endocrinologia. As sugestões desta seção baseiam-se em experiência clínica e dados observacionais e devem ser aplicadas com cautela, adaptadas ao contexto individual do paciente e enquadradas no objetivo mais amplo de cessação futura.

Elemento central da redução de danos é a educação do paciente e o estabelecimento colaborativo de metas. Os clínicos devem informar os pacientes sobre os riscos à saúde, tanto de curto quanto de longo prazo, do abuso de andrógenos e explorar as motivações subjacentes ao uso. Isso pode incluir a discussão sobre otimização do treinamento, da nutrição, do sono e do manejo do estresse, que podem melhorar os resultados sem o uso de aprimoramento farmacológico. 

Quando a interrupção ainda não é viável, deve-se promover um uso mais responsável:

  • Duração do ciclo e dose: orientar ciclos curtos utilizando a menor dose eficaz para limitar a exposição cumulativa e o risco.
  • Seleção do composto: evitar andrógenos orais alquilados devido à toxicidade hepática e aos efeitos adversos sobre o perfil lipídico; em geral, é preferível o uso de ésteres injetáveis de testosterona.
  • Período de recuperação: recomendar intervalos adequados entre os ciclos para facilitar a recuperação hormonal e reduzir a probabilidade de hipogonadismo prolongado; desencorajar esquemas de “blast-and-cruise”.
  • Uso de outros PIEDs: desencorajar o uso de outras drogas para melhora de desempenho e imagem corporal, incluindo agentes de terapia pós-ciclo, clenbuterol, insulina e GH em altas doses, pois oferecem benefício limitado e acarretam riscos significativos à saúde.

Quando surgem sintomas como efeitos colaterais de curto prazo do abuso de andrógenos, os clínicos devem primeiro avaliar se há melhora com a redução da dose ou a interrupção. Se os sintomas persistirem e causarem sofrimento significativo ou prejuízo funcional, pode-se considerar manejo médico seletivo, com atenção cuidadosa para não reforçar inadvertidamente o uso continuado. Por exemplo, a acne pode justificar tratamento direcionado, mas tanto clínicos quanto pacientes devem estar cientes de que a eficácia pode ser menor enquanto a exposição aos andrógenos continuar. Em alguns casos — como ginecomastia inicial — a intervenção médica pode ajudar a prevenir progressão para alterações irreversíveis, incluindo remodelamento fibrótico, que posteriormente poderiam exigir correção cirúrgica.

Quanto aos efeitos cardiovasculares, o manejo deve ser orientado não apenas pelos achados da avaliação diagnóstica inicial, mas também pela exposição cumulativa estimada aos andrógenos, que pode influenciar significativamente o risco vascular de longo prazo. Dada a exposição contínua nesses pacientes, é prudente adotar uma abordagem cautelosa e tratar proativamente os fatores de risco modificáveis. O manejo do risco cardiovascular, incluindo o tratamento da hipertensão e da dislipidemia, deve seguir as diretrizes estabelecidas para prevenção primária. Eritrocitose acentuada pode justificar intervenção, embora as evidências que sustentam flebotomias periódicas ou o uso de ácido acetilsalicílico em baixa dose nessa população sejam limitadas.

Uma vez estabelecido um plano de manejo, o seguimento deve ser adaptado ao estado clínico do paciente e ao uso contínuo. Para aqueles que mantêm uso em altas doses, podem ser consideradas avaliações laboratoriais periódicas e monitorização cardiovascular, embora as estratégias e a frequência ideais de acompanhamento não estejam definidas. Novas alterações, como elevação de transaminases hepáticas, eritrocitose ou declínio da função renal, devem motivar investigação adicional e servir como momentos críticos para retomar a discussão sobre redução da dose de andrógenos ou práticas de uso mais seguro. Ao longo do seguimento, o clínico deve manter um diálogo aberto sobre a disposição do paciente em interromper o uso de andrógenos ou, ao menos, considerar o desenvolvimento de uma estratégia de saída no longo prazo. Mesmo quando a cessação não é imediatamente viável, o engajamento contínuo cria oportunidades para construir confiança e preparar o terreno para mudanças comportamentais futuras.

Conclusão

O abuso de andrógenos representa uma realidade crescente e cada vez mais complexa na prática médica contemporânea — uma realidade que desafia as fronteiras tradicionais entre estilo de vida, desempenho e patologia. Embora os riscos clínicos do abuso de andrógenos em altas doses estejam bem estabelecidos, é frequentemente a lacuna entre o conhecimento médico e a experiência do usuário que dificulta um cuidado eficaz. Os médicos não são apenas responsáveis por reconhecer as consequências fisiológicas do abuso de andrógenos, mas também por se engajar com uma população que, com frequência, opera fora dos sistemas formais de saúde. Isso exige uma mudança de mentalidade: da desaprovação ou evitação para um envolvimento informado e pragmático.

Embora a redução de danos permaneça uma estratégia controversa e careça de respaldo em ensaios clínicos randomizados, ela se alinha a princípios clínicos fundamentais — encontrar o paciente onde ele está, oferecer orientações baseadas em evidências e reduzir danos previsíveis naqueles que (ainda) não estão dispostos ou não são capazes de se abster. Essa abordagem preserva oportunidades futuras para mudanças significativas.

À medida que a prevalência do abuso de andrógenos continua a aumentar, uma resposta médica ponderada e compassiva torna-se não apenas relevante, mas indispensável. Ao mesmo tempo, a redução de danos no cuidado relacionado aos andrógenos ainda é amplamente guiada pela experiência clínica e pelo consenso de especialistas, e não por evidências empíricas robustas. Há uma necessidade urgente de estudos prospectivos que avaliem a eficácia, a segurança e os desfechos de longo prazo de diferentes estratégias de redução de danos. Somente por meio de investigação sistemática será possível avançar da plausibilidade para a comprovação e oferecer aos usuários de andrógenos um cuidado que seja não apenas empático, mas também fundamentado em evidências.

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By Alberto Dias Filho - Digital Opinion Leader
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