[Conteúdo para profissionais da saúde] - Fadiga adrenal é mito: o que a endocrinologia e as evidências científicas dizem




O termo 'fadiga adrenal' tem ganhado notável popularidade na mídia, entre o público leigo e, de forma preocupante, no meio médico. Mas afinal, existe ou não Fadia adrenal?

Não existe evidência científica que comprove a existência da "fadiga adrenal" como entidade clínica reconhecida pela endocrinologia. As principais sociedades médicas, como a American Association of Clinical Endocrinologists e a American College of Endocrinology, afirmam que "fadiga adrenal" não é reconhecida como diagnóstico válido, e os testes propostos para sua detecção não têm validação ou padrões de referência estabelecidos

O objetivo central deste texto é consolidar e analisar as evidências científicas que refutam a existência da 'fadiga adrenal' como uma entidade nosológica válida, servindo como um guia técnico e esclarecedor para profissionais de saúde.

A discrepância entre a popularidade do termo e sua validade científica é gritante. Uma simples pesquisa online revela a dimensão do fenômeno: em 4 de julho de 2014, o termo "fadiga+adrenal" retornava 114.000 resultados no Google, enquanto sua versão em inglês, "adrenal+fatigue", alcançava 2.370.000 resultados. Essa proeminência digital contrasta com a sua completa ausência nos consensos e diretrizes das principais organizações médicas globais.

Para compreender essa dissonância, é fundamental analisar a origem do conceito de 'fadiga adrenal' e os métodos de diagnóstico não validados que sustentam sua suposta existência, desconstruindo as bases frágeis sobre as quais este diagnóstico se apoia.

O Conceito e a Popularização da 'Fadiga Adrenal'


Entender como um diagnóstico sem respaldo científico ganha tração na prática clínica e no imaginário popular é um passo crucial para combatê-lo. Tentarei nas linhas abaixo desconstruir a origem do termo 'fadiga adrenal', bem como os métodos diagnósticos e os argumentos propostos por seus defensores.

O termo 'fadiga adrenal' foi cunhado pelo naturopata James Wilson em um livro publicado em 1998, sendo proposto como um agrupamento de sintomas vagos e inespecíficos, supostamente causados pelo esgotamento das glândulas adrenais devido ao estresse crônico. 

Os sintomas elencados no questionário de Wilson, frequentemente utilizado como ferramenta de triagem, ilustram a natureza genérica da suposta condição:

1. Cansado sem razão aparente.
2. Dificuldade em acordar de manhã.
3. Necessidade de café, refrigerantes tipo cola, doces ou salgadinhos para ter energia.
4. Sentindo-se para baixo ou estressado.
5. Fissurado em doces ou salgadinhos.
6. Lutando para manter as tarefas de rotina.
7. Não consegue se desvencilhar do estresse e da doença.
8. Não se diverte.
9. Não tem vontade de manter relações sexuais.

Este questionário jamais passou por um processo de validação científica e seus itens são tão abrangentes que poderiam se aplicar a uma vasta parcela da população em diferentes momentos da vida. A natureza deliberadamente genérica destes sintomas não só garante uma alta taxa de 'positivos', mas também cria uma perigosa cortina de fumaça que obscurece a investigação de patologias reais.

O fluxograma diagnóstico tipicamente utilizado pelos proponentes da 'fadiga adrenal' inicia-se com a aplicação deste questionário. Pacientes considerados "suspeitos" são então submetidos a testes não padronizados, como a dosagem do cortisol sérico basal ou a avaliação do ritmo de cortisol salivar. 

Os resultados são interpretados com base em critérios de corte que "diferem completamente da prática endocrinológica usual". Aqueles com valores abaixo desses limiares arbitrários recebem o diagnóstico e, frequentemente, a prescrição de corticoterapia. Trata-se de uma perigosa simplificação da prática clínica que ignora a complexidade da fisiologia adrenal.

Esta abordagem diagnóstica, desprovida de validação, contrasta diretamente com a análise rigorosa das evidências científicas, que será detalhada a seguir.

Análise Crítica da Evidência Científica


A prática da medicina baseada em evidências é o pilar que sustenta a segurança e a eficácia das intervenções em saúde. Qualquer diagnóstico ou tratamento deve ser fundamentado em dados robustos e reprodutíveis. Esta seção avalia criticamente a base científica da 'fadiga adrenal', abordando o posicionamento oficial de sociedades médicas e a qualidade metodológica da literatura que a promove.

Ausência de Reconhecimento por Sociedades Médicas

A posição da comunidade endocrinológica internacional é unânime e inequívoca. A Endocrine Society, uma das mais respeitadas organizações médicas do mundo, publicou uma declaração clara sobre o assunto:

“A fadiga adrenal não é uma condição médica real. Não existem fatos científicos para suportar a teoria que estresse físico, mental ou emocional esgotem as glândulas adrenais e causem sintomas.”

Este posicionamento é um reflexo do consenso global. Nenhuma sociedade de endocrinologia jamais reconheceu ou comprovou oficialmente a existência desta condição, distanciando-a completamente da prática médica validada.

Fragilidade Metodológica dos Estudos

Uma análise da literatura que utiliza o termo 'fadiga adrenal' revela uma profunda fragilidade metodológica. Os trabalhos que sustentam sua existência são, em sua maioria, de baixa qualidade, de caráter unicamente descritivo, sem referências de qualidade e falham em discorrer ou citar uma etiologia plausível para a suposta condição. 

A preferência por questionários não validados, como o de Wilson, em detrimento de instrumentos psicométricos robustos e consolidados, como a SF-36 Vitality Scale, é um forte indicativo da falta de rigor metodológico que permeia a literatura favorável a este suposto diagnóstico.

Um ponto crítico identificado na revisão da literatura é que nenhum dos autores dos artigos revisados que defendem o conceito possui formação em Endocrinologia. Essa ausência resultou na não utilização dos critérios padrão-ouro para a avaliação do eixo adrenal, criando "novos critérios" que foram fracamente validados e sem correlação com os testes funcionais estabelecidos.

A Falácia da causa e efeito: Alterações de cortisol como consequência, não causa


Um dos argumentos centrais dos proponentes da 'fadiga adrenal' é a identificação de alterações no ritmo de cortisol, como a atenuação da resposta ao despertar. No entanto, a evidência científica sugere que tais alterações, quando presentes, tendem a ser uma consequência da fadiga, do estresse crônico ou do burnout, e não a sua causa. Este erro fundamental de atribuição causal é a falha lógica central que sustenta a pseudociência da 'fadiga adrenal', levando a intervenções terapêuticas mal direcionadas.

Um exemplo claro dessa relação é encontrado na depressão maior. Pacientes com essa condição frequentemente apresentam um ciclo de cortisol aberrante, com diminuição da queda esperada ao longo do dia. Neste caso, a alteração hormonal é uma consequência bem documentada da patologia psiquiátrica, e não a origem do problema. Da mesma forma, tratar a alteração do cortisol sem abordar a causa subjacente da fadiga é ineficaz e potencialmente perigoso.

A ausência de embasamento científico não apenas desqualifica a 'fadiga adrenal' como diagnóstico, mas também expõe os pacientes a riscos concretos, decorrentes de tratamentos inadequados e do atraso no diagnóstico de condições reais, como será abordado na seção seguinte.

Riscos associados ao diagnóstico e tratamento inadequados


A adoção de um diagnóstico fictício como 'fadiga adrenal' acarreta implicações clínicas negativas e sérias. Os perigos não são apenas teóricos; eles se manifestam de duas formas principais: os efeitos adversos diretos de tratamentos injustificados e o risco de negligenciar ou atrasar o diagnóstico de doenças reais e potencialmente graves.

Perigos da corticoterapia injustificada

O tratamento mais frequentemente proposto para a 'fadiga adrenal' é a corticoterapia, geralmente com hidrocortisona base em doses consideradas "fisiológicas". Embora a intenção possa ser a de "suportar" a glândula adrenal, o uso de corticoides exógenos, mesmo em baixas doses, não é isento de riscos sistêmicos bem estabelecidos, como o aumento do risco cardiovascular e de osteoporose.

A "melhora" inicial que alguns pacientes relatam ao iniciar a corticoterapia é frequentemente mal interpretada como uma confirmação do diagnóstico. Na realidade, esta resposta não é terapêutica, mas sim um efeito farmacológico conhecido (descrito na fonte como 'corticite'), que induz uma sensação temporária de bem-estar e disposição, mascarando a ausência de um problema adrenal subjacente.

Atraso no diagnóstico de outras doenças

Talvez o maior risco de aceitar um diagnóstico de 'doença falsa' seja a perda de tempo e oportunidade para identificar a causa real dos sintomas do paciente. A fadiga é um sintoma inespecífico comum a uma vasta gama de condições médicas que exigem diagnóstico e tratamento adequados. Ao atribuir os sintomas à 'fadiga adrenal', corre-se o risco de ignorar patologias importantes, como:

* Síndrome da apneia obstrutiva do sono
* Insuficiência adrenal (a condição endocrinológica real e grave)
* Hipotireoidismo
* Depressão e outros diagnósticos de saúde mental
* Anemia
* Trabalho excessivo (Burnout)
* Inversão e irregularidade de turno no trabalho
* Deficiências hormonais de outros eixos
* Hepatopatias, cardiopatias e nefropatias crônicas
* Doença Pulmonar Obstrutiva Crônica (DPOC)
* Doenças autoimunes

Diante de tais riscos, torna-se imperativo abandonar abordagens pseudocientíficas e adotar a metodologia clínica correta para a investigação dos sintomas relatados pelos pacientes.

A abordagem médica correta para fadiga e avaliação da adrenal


Embora a 'fadiga adrenal' não exista como entidade clínica, os sintomas de fadiga, estresse e mal-estar que os pacientes relatam são absolutamente reais e merecem uma investigação médica rigorosa e empática. A resposta adequada não é oferecer um diagnóstico falso, mas sim conduzir uma avaliação completa baseada nos procedimentos padrão-ouro da medicina e da endocrinologia.

Investigação de Diagnósticos Diferenciais

O ponto de partida para qualquer paciente que se queixa de fadiga crônica é uma anamnese detalhada e um exame físico completo. Esta avaliação inicial deve guiar a investigação das múltiplas causas potenciais, incluindo a ampla lista de condições referenciada na seção anterior. A abordagem deve ser metódica, descartando ou confirmando sistematicamente os diagnósticos diferenciais validados, em vez de se fixar em um conceito não comprovado.

Avaliação Padrão-Ouro da Função Adrenal

Caso haja uma suspeita clínica fundamentada de disfunção adrenal real (ou seja, insuficiência adrenal), a avaliação deve seguir os protocolos estabelecidos pela endocrinologia, que contrastam fortemente com os métodos pseudocientíficos. A avaliação da reserva adrenal e da integridade do eixo Hipotálamo-Hipófise-Adrenal (HHA) é realizada por meio de testes funcionais reconhecidos:

* Teste de cortrosina (ACTH sintético): Este teste avalia diretamente a capacidade de resposta e a reserva da glândula adrenal. A administração de ACTH sintético (cortrosina) deve provocar um aumento robusto na produção de cortisol em um indivíduo saudável. Uma falha nesta resposta pode indicar insuficiência adrenal primária ou secundária.
* Teste de tolerância à insulina (TTI): Considerado o padrão-ouro para avaliar a funcionalidade completa do eixo HHA. Ao induzir uma hipoglicemia controlada, um potente estressor fisiológico que testa a integridade de todo o eixo HHA, o teste deve, invariavelmente, ativar o eixo e resultar em uma liberação significativa de cortisol. Uma resposta inadequada demonstra um comprometimento em algum nível do eixo HHA.

Exames como a dosagem do cortisol salivar ou sérico ao acordar não expressam a reserva adrenal. Na melhor das hipóteses, podem funcionar como marcadores que necessitam de uma investigação mais aprofundada com os testes funcionais descritos, mas jamais podem, isoladamente, definir uma causa ou justificar o início de um tratamento com hidrocortisona.

A aplicação rigorosa destes métodos é a única forma de garantir um diagnóstico preciso e seguro, fundamentando as conclusões e recomendações que se seguem.

Conclusão e Recomendações para a Prática Clínica


A análise rigorosa da literatura e dos consensos médicos internacionais impõe uma conclusão inequívoca: a 'fadiga adrenal' é uma construção teórica sem qualquer validade nosológica. Seu diagnóstico baseia-se em sintomas inespecíficos e métodos laboratoriais inválidos, enquanto o tratamento proposto, a corticoterapia, acarreta riscos significativos para a saúde do paciente e mascara a investigação de doenças reais. Os sintomas dos pacientes são genuínos, mas o diagnóstico de 'fadiga adrenal' não é.

Diante do exposto, as seguintes recomendações são propostas para a prática clínica:

1. Rejeitar inequivocamente o diagnóstico de 'fadiga adrenal': Classificá-lo como uma condição sem embasamento científico e abster-se de utilizá-lo na prática clínica.
2. Conduzir rigorosamente a investigação de diagnósticos diferenciais validados: Diante de um paciente com queixas de fadiga, conduzir uma avaliação médica completa para investigar as causas reais dos sintomas.
3. Utilizar exclusivamente os testes validados pela Endocrinologia: Em caso de suspeita clínica de disfunção adrenal verdadeira (insuficiência adrenal), proceder com os testes funcionais padrão-ouro (teste de cortrosina e/ou TTI) para confirmar ou descartar o diagnóstico.
4. Assumir um papel ativo na educação de pacientes e colegas: Esclarecer ativamente sobre a falta de evidências para a 'fadiga adrenal' e os perigos associados ao seu diagnóstico e tratamento, promovendo a medicina baseada em evidências.

É imperativo que a comunidade médica reafirme seu compromisso com o rigor científico, garantindo que a prática clínica seja guiada por evidências, e não por modismos. Conforme aponta o Dr. Flávio A. Cadegiani, endocrinologista e com doutorado em adrenal pela UNIFESP.

"É um momento importante para que os 'divulgadores' desviem seus esforços para a realização de estudos de qualidade. Mais estudo e menos divulgação, por enquanto, é a palavra de ordem."

Autor: Dr. Frederico Lobo - Médico Nutrólogo - CRM-GO 13192 - RQE 11915 - Gostou do texto e quer conhecer mais sobre minha pratica clínica (presencial/telemedicina), clique aqui. 

Bibliografia:
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