As medidas atuais de obesidade baseadas no IMC podem tanto subestimar quanto superestimar a adiposidade e fornecem informações inadequadas sobre a saúde no nível individual, prejudicando abordagens médicas fundamentadas para o cuidado à saúde e formulação de políticas. Esta Comissão buscou definir a obesidade clínica como uma condição de doença que, assim como a noção de doença crônica em outras especialidades médicas, resulta diretamente do efeito do excesso de adiposidade na função de órgãos e tecidos.
O objetivo específico da Comissão foi estabelecer critérios objetivos para o diagnóstico da doença, auxiliando na tomada de decisões clínicas, na priorização de intervenções terapêuticas e nas estratégias de saúde pública. Para isso, um grupo de 58 especialistas — representando diversas especialidades médicas e países — discutiu as evidências disponíveis e participou de um processo de consenso. Entre os membros da comissão estavam pessoas com experiência vivida em obesidade, para garantir a consideração das perspectivas dos pacientes.
A Comissão define a obesidade como uma condição caracterizada por excesso de adiposidade, com ou sem distribuição ou função anormal do tecido adiposo, cujas causas são multifatoriais e ainda não completamente compreendidas. Definimos a obesidade clínica como uma doença crônica e sistêmica caracterizada por alterações na função de tecidos, órgãos, do indivíduo como um todo, ou uma combinação destes, devido ao excesso de adiposidade. A obesidade clínica pode causar danos severos a órgãos-alvo, levando a complicações que alteram a vida e podem ser fatais (ex.: infarto do miocárdio, acidente vascular cerebral e insuficiência renal).
Definimos a obesidade pré-clínica como um estado de excesso de adiposidade com função preservada de outros tecidos e órgãos e risco variável, mas geralmente aumentado, de desenvolver obesidade clínica e outras doenças não transmissíveis (ex.: diabetes tipo 2, doenças cardiovasculares, certos tipos de câncer e transtornos mentais). Embora o risco de mortalidade e doenças associadas à obesidade aumente de forma contínua com níveis crescentes de massa de gordura, diferenciamos obesidade pré-clínica e clínica (ou seja, saúde vs. doença) para fins clínicos e relacionados a políticas.
Recomendamos que o IMC seja usado apenas como uma medida substituta de risco à saúde em nível populacional, para estudos epidemiológicos ou triagem, em vez de uma medida individual de saúde. O excesso de adiposidade deve ser confirmado por medição direta de gordura corporal, quando disponível, ou por pelo menos um critério antropométrico (ex.: circunferência da cintura, relação cintura-quadril ou relação cintura-altura), além do IMC, utilizando métodos e pontos de corte validados, apropriados para idade, sexo e etnia. Em pessoas com IMC muito elevado (ou seja, >40 kg/m²), o excesso de adiposidade pode ser pragmaticamente assumido sem necessidade de confirmação adicional.
Recomendamos também que pessoas com status de obesidade confirmado (ou seja, excesso de adiposidade com ou sem função anormal de órgãos ou tecidos) sejam avaliadas para obesidade clínica. O diagnóstico de obesidade clínica requer um ou ambos os seguintes critérios principais:
1. Evidências de função reduzida de órgãos ou tecidos devido à obesidade (ou seja, sinais, sintomas ou exames diagnósticos mostrando anormalidades na função de um ou mais sistemas de órgãos ou tecidos);
2. Limitações substanciais, ajustadas por idade, das atividades diárias, refletindo o efeito específico da obesidade na mobilidade, outras atividades básicas da vida diária (ex.: banho, vestir-se, higiene, continência e alimentação), ou ambos.
Pessoas com obesidade clínica devem receber tratamento baseado em evidências e em tempo adequado, com o objetivo de induzir melhorias (ou remissão, quando possível) nas manifestações clínicas da obesidade e prevenir a progressão para danos em órgãos-alvo.
Pessoas com obesidade pré-clínica devem passar por aconselhamento de saúde baseado em evidências, monitoramento de seu estado de saúde ao longo do tempo e, quando aplicável, intervenção apropriada para reduzir o risco de desenvolver obesidade clínica e outras doenças relacionadas à obesidade, conforme o nível de risco individual.
Políticos e autoridades de saúde devem garantir acesso adequado e equitativo a tratamentos baseados em evidências para indivíduos com obesidade clínica, como apropriado para pessoas com uma doença crônica e potencialmente fatal. Estratégias de saúde pública para reduzir a incidência e prevalência da obesidade em nível populacional devem basear-se em evidências científicas atuais, em vez de suposições não comprovadas que atribuem a responsabilidade exclusivamente ao indivíduo pelo desenvolvimento da obesidade.
O preconceito e o estigma relacionados ao peso são grandes obstáculos nos esforços para prevenir e tratar a obesidade de forma eficaz; profissionais de saúde e formuladores de políticas devem receber treinamento adequado para abordar essa questão importante.
Todas as recomendações apresentadas por esta Comissão foram acordadas com o mais alto nível de consenso entre os comissários (grau de concordância de 90–100%) e foram endossadas por 76 organizações em todo o mundo, incluindo sociedades científicas e grupos de defesa de pacientes.
* Introdução
A obesidade foi reconhecida pela primeira vez como uma doença pela OMS em 1948 e, mais recentemente, também por diversas sociedades médicas e países. A atual Classificação Internacional de Doenças da OMS classifica a obesidade como “uma doença crônica complexa” e lhe atribui um código específico (5B81).
No entanto, a ideia de considerar a obesidade como uma doença isolada continua sendo controversa, tanto dentro quanto fora da comunidade médica. Avaliar o mérito dessa ideia é um esforço oportuno e de grande impacto, pois definir a obesidade como uma doença tem profundas ramificações para a prática clínica, a saúde pública e a sociedade.
Aqueles que defendem o reconhecimento da obesidade como uma doença argumentam que, mesmo pessoas com evidências objetivas de problemas de saúde enfrentam barreiras substanciais para acessar serviços de saúde, além do estigma social amplamente disseminado relacionado ao peso. Reconhecer formalmente a obesidade como uma doença isolada — de acordo com os defensores dessa ideia — provavelmente proporcionaria maior legitimidade médica e cultural à condição, aumentaria o acesso ao cuidado para aqueles que necessitam e poderia reduzir o estigma social.
Por outro lado, muitos afirmam que definir a obesidade como uma doença pode ter ramificações negativas para os indivíduos afetados e para a sociedade como um todo. Um dos argumentos é que retratar a obesidade como uma doença poderia reduzir a atenção ao papel da responsabilidade individual, incentivando comportamentos pouco saudáveis e minando esforços para enfrentar o problema. Em nossa opinião, esse argumento, até certo ponto, pode refletir o viés e o estigma intrínsecos ao peso em nossa sociedade. Outros críticos apontam questões mais objetivas, como o fato de a obesidade ser uma condição altamente heterogênea e de que muitas pessoas com excesso de adiposidade não apresentam sinais de doenças em andamento.
Muitos argumentam que um fator de risco não é uma doença e que o IMC não fornece informações sobre a saúde de um indivíduo. Nesse contexto, atribuir o status de doença à obesidade de forma abrangente (como atualmente definida e medida [ou seja, IMC >30 kg/m² ou 27,5 kg/m² para populações asiáticas]) representa um risco objetivo de sobrediagnóstico, resultando no uso indevido de medicamentos, tecnologias e procedimentos cirúrgicos, com custos sociais exorbitantes e consequências negativas nos níveis clínico, econômico e político.
Com argumentos legítimos e aparentemente irreconciliáveis de ambos os lados da controvérsia, o debate permanece sem resolução. Contudo, essa disputa revela um elemento crucial que falta na forma como a obesidade é conceituada: como a doença causada diretamente pela obesidade ainda não foi definida, a obesidade carece de uma identidade clínica precisa.
De acordo com sua definição original como uma condição que representa um risco à saúde, a obesidade tem sido enquadrada e amplamente estudada como um precursor de outras doenças. No entanto, as manifestações da obesidade como uma enfermidade não foram adequadamente caracterizadas.
De fato, o fenótipo da obesidade ainda é definido apenas pela corpulência, apesar de evidências de que o excesso de adiposidade também pode ter manifestações clínicas e causar doenças ao induzir disfunções em diversos órgãos e tecidos.
Normalmente, os sistemas de pontuação e estadiamento e os algoritmos de tratamento para a obesidade são baseados na presença de outras doenças (frequentemente chamadas de comorbidades), e não nas manifestações clínicas da obesidade em si. Essas narrativas e práticas reforçam ainda mais a noção da obesidade como uma condição de risco, mas não explicam a identidade clínica da obesidade propriamente dita.
Estados de doença são fundamentalmente definidos por sua capacidade de causar enfermidade, entendida como uma experiência humana tanto objetiva quanto subjetiva de problemas de saúde, decorrente de alterações contínuas na função de órgãos e tecidos.
Sem uma caracterização explícita da doença induzida intrinsecamente pela obesidade, independentemente das comorbidades — ou seja, sem um objeto claro para o diagnóstico da doença —, a questão de saber se a obesidade é uma doença torna-se objetivamente impossível de responder.
Além disso, o excesso de adiposidade (como a obesidade é atualmente definida) pode ter significados bastante diferentes no nível individual e até mesmo ser um sinal de outras doenças (por exemplo, síndrome de Cushing ou hipotireoidismo).
Assim, a definição atual de obesidade carece, de forma inerente, de sensibilidade e especificidade suficientes para uso clínico, justificando preocupações sobre uma definição generalizada da obesidade como um estado de doença independente.
No entanto, a incapacidade de reconhecer a obesidade como uma causa direta de problemas de saúde pode comprometer tratamentos eficazes e políticas médicas sólidas por parte de agências reguladoras e seguradoras de saúde. É prática comum exigir a presença de outra doença (os chamados critérios de obesidade mais) como indicação e cobertura para o tratamento da obesidade. Essas práticas podem, de forma efetiva e injusta, negar acesso ao cuidado a muitas pessoas que já apresentam problemas objetivos de saúde devido exclusivamente à obesidade.
Há, portanto, uma necessidade urgente de definir a enfermidade que a obesidade induz especificamente, entendida como uma entidade clínica distinta na qual o risco de problemas de saúde associados ao excesso de adiposidade já se materializou e pode ser documentado de forma objetiva por sinais e sintomas específicos que refletem alterações biológicas contínuas em tecidos e órgãos (definimos essa enfermidade como obesidade clínica).
Essa reestruturação pode fornecer uma peça crucial que falta na maneira como conceituamos e abordamos a obesidade, com importantes implicações para a prática clínica, políticas de saúde pública e visões sociais sobre a obesidade.
Esta Comissão foi estabelecida para identificar critérios clínicos e biológicos para o diagnóstico de obesidade clínica que, à semelhança dos métodos diagnósticos para doenças crônicas em outras especialidades médicas, reflitam uma condição de enfermidade em curso. O objetivo geral é auxiliar na tomada de decisão por parte de clínicos e formuladores de políticas, facilitando a identificação de prioridades para intervenções clínicas e estratégias de saúde pública (painéis 1 e 2).
* Painel 1
O problema que a Comissão buscou abordar
Contexto
Apesar das evidências de que algumas pessoas com excesso de adiposidade apresentam problemas objetivos de saúde devido exclusivamente à obesidade, a obesidade é geralmente considerada um prenúncio de outras doenças, e não uma doença em si.
A ideia de obesidade como uma doença continua altamente controversa. O fenótipo clínico da obesidade ainda é unicamente definido pelo IMC, que não fornece informações sobre a saúde em nível individual. Nesse contexto, uma atribuição generalizada do status de doença à obesidade (como atualmente definida e medida) apresenta um risco objetivo de sobrediagnóstico, com potenciais consequências negativas nos âmbitos clínico, econômico e político.
Objetivo da Comissão
Buscamos definir a obesidade clínica e identificar critérios objetivos e pragmáticos para seu diagnóstico. Assim como a ideia de enfermidade em outras especialidades médicas, a obesidade clínica é entendida como um desvio substancial do funcionamento normal de tecidos, órgãos, do organismo como um todo ou de qualquer combinação desses elementos.
O objetivo desta Comissão é informar a tomada de decisão por clínicos e formuladores de políticas, facilitando a identificação de prioridades para intervenções clínicas e estratégias de saúde pública.
* Painel 2
As recomendações da Comissão em contexto
* Nosso novo modelo diagnóstico para obesidade
Embora a obesidade deva ser biologicamente concebida como um continuum, saúde e doença são tipicamente (e necessariamente) definidas como condições distintas e dicotômicas no nível clínico. Por isso, distinguimos pragmaticamente obesidade clínica da obesidade pré-clínica com base na presença ou ausência, respectivamente, de manifestações clínicas objetivas (ou seja, sinais e sintomas) de função orgânica alterada ou comprometimento da capacidade do indivíduo de realizar atividades diárias.
A definição de obesidade clínica preenche uma importante lacuna conceitual na noção de obesidade, pois fornece identidade clínica às alterações características da função orgânica causadas diretamente pelo excesso de adiposidade, independentemente de outras doenças relacionadas à obesidade. Essa reformulação oferece um mecanismo clinicamente relevante para orientar diagnósticos, decisões clínicas e políticas de saúde.
* Implicações conceituais para o cuidado e a política de saúde
A obesidade pré-clínica e clínica distinguem pragmaticamente condições em que o efeito negativo à saúde pode ocorrer (como na obesidade pré-clínica) ou já ocorreu (como na obesidade clínica). Assim, estratégias de manejo para obesidade pré-clínica devem visar à redução de risco (ou seja, com intenção preventiva ou profilática), enquanto as intervenções para obesidade clínica devem ter intenção corretiva (ou seja, terapêutica).
* Recomendações práticas para os clínicos
Para mitigar o risco de sobrediagnóstico e subdiagnóstico de obesidade, o excesso de adiposidade deve ser confirmado por pelo menos um outro critério antropométrico (como a circunferência da cintura) ou por medição direta de gordura, quando disponível. No entanto, em pessoas com níveis de IMC substancialmente elevados (ou seja, >40 kg/m²), o excesso de adiposidade pode ser pragmaticamente presumido. A confirmação do status de obesidade define um fenótipo físico, mas não representa, por si só, um diagnóstico de doença. Pessoas com obesidade confirmada (ou seja, com excesso de adiposidade clinicamente documentado) devem ser avaliadas para possível obesidade clínica com base em achados da história médica, exame físico e testes laboratoriais ou outros exames diagnósticos, conforme apropriado. Assim como em outras doenças crônicas, o tratamento baseado em evidências da obesidade clínica deve ser iniciado de maneira oportuna, com o objetivo de melhorar (ou, quando possível, reverter) as manifestações clínicas.
A obesidade pré-clínica geralmente não requer tratamento com medicamentos ou cirurgia, podendo exigir apenas monitoramento da saúde ao longo do tempo e aconselhamento em saúde, caso o risco de progressão para obesidade clínica ou outras doenças seja considerado suficientemente baixo. No entanto, intervenções profiláticas (como mudanças no estilo de vida, medicamentos ou cirurgia em circunstâncias específicas) podem ser necessárias em algumas pessoas com obesidade pré-clínica quando o risco de desfechos adversos de saúde for maior ou quando o controle da obesidade for necessário para facilitar tratamentos de outras doenças (como transplantes, cirurgia ortopédica ou tratamento do câncer).
* Implicações para políticas de saúde
Nossa caracterização de obesidade pré-clínica e clínica facilita a tomada de decisão política e a definição de prioridades, especialmente ao lidar com recursos limitados no sistema de saúde. O modelo de obesidade pré-clínica e clínica também distingue objetivamente cenários associados a diferentes prazos para avaliar os desfechos e a relação custo-efetividade das intervenções antiobesidade (por exemplo, prazo mais longo para obesidade pré-clínica e mais curto para obesidade clínica). Como uma doença crônica em si, a obesidade clínica não deve exigir a presença de outras doenças para definir indicação ou cobertura de tratamento (como ocorre atualmente nos critérios “obesidade mais” para cobertura de seguros de saúde).
* Obesidade como uma doença
Uma definição generalizada de obesidade como doença implicaria um risco inaceitavelmente alto de sobrediagnóstico. Nossa definição de obesidade clínica como uma doença sistêmica, crônica e diretamente causada por excesso de adiposidade fornece uma explicação mais coerente de por que a obesidade pode atender aos critérios geralmente aceitos de estado de doença em certas circunstâncias, mas não sempre. Ao definir a obesidade pré-clínica, também reconhecemos que o excesso de adiposidade pode coexistir com a preservação da saúde.
* Obesidade clínica ou pré-clínica versus obesidade metabolicamente saudável ou não saudável
Embora a obesidade metabolicamente não saudável represente uma condição com maior risco cardiometabólico, a obesidade clínica define uma doença em andamento, e não uma gradação de risco. Nosso modelo também reconhece que a obesidade pode causar doenças ao alterar a função de vários sistemas orgânicos, não apenas os envolvidos na regulação metabólica. Assim, uma pessoa com sinais e sintomas cardiovasculares, musculoesqueléticos ou respiratórios relacionados ao excesso de adiposidade teria obesidade clínica, mesmo com função metabólica normal. Por outro lado, uma pessoa com uma única alteração metabólica (como dislipidemia) não atenderia ao critério de cluster metabólico (hiperglicemia com baixo HDL e triglicerídeos elevados) para o diagnóstico de obesidade clínica. Essa pessoa, portanto, seria classificada como tendo obesidade pré-clínica.
A obesidade pré-clínica difere da obesidade metabolicamente saudável porque é definida pela preservação da função de todos os órgãos potencialmente afetados pela obesidade, e não apenas aqueles envolvidos na regulação metabólica.
* Obesidade pré-clínica versus chamada pré-obesidade
A pré-obesidade indica um estágio inicial da obesidade ao longo do continuum de aumento da adiposidade ou dos níveis de peso corporal, enquanto a obesidade pré-clínica implica um fenótipo de obesidade já existente.
A obesidade pré-clínica pode refletir condições heterogêneas associadas ao excesso de adiposidade, incluindo um sinal de outras doenças ou efeitos colaterais de medicamentos, uma adaptação parafisiológica a ambientes modernos (com baixo ou nenhum risco de progressão para obesidade clínica) ou um estágio inicial da obesidade clínica propriamente dita (apenas nesse último caso, poderia ser considerada equivalente a um estado pré-doença).
* Definição e diagnóstico de estados de doença e pré-doença na medicina
* Princípios gerais
Embora a noção de doença possa parecer óbvia, não existe uma definição clara e universalmente aceita para doença. Uma abordagem abrangente foi proposta por Stanley Heshka e David Allison, que definem doença como:
(A) uma condição do corpo, de suas partes, órgãos ou sistemas, ou uma alteração desses;
(B) resultante de infecção, parasitas, causas nutricionais, alimentares, ambientais, genéticas ou outras;
(C) caracterizada por um grupo de sintomas ou sinais identificáveis e marcantes; e
(D) um desvio da estrutura ou função normal (descrito de várias formas como estrutura ou função anormal; função incorreta; comprometimento do estado normal; interrupção, perturbação, cessação, desordem ou disfunção de órgãos ou sistemas corporais).
Pré-doença descreve condições que não atingiram o estágio ou nível que as classificariam como doença, mas que, ao mesmo tempo, não permitem declarar a pessoa como completamente livre de doença. Exemplos incluem infecção pelo HIV, pólipos adenomatosos do cólon, pré-diabetes e osteopenia. Essas condições podem ser detectadas por meio de programas de triagem e tratadas para evitar o estágio final da doença (por exemplo, AIDS, câncer de cólon, diabetes tipo 2 e osteoporose, respectivamente, para os exemplos mencionados).
A noção de doença é inerentemente ligada a uma patofisiologia distinta que pode causar alterações em um único órgão ou em vários órgãos (doenças sistêmicas). No entanto, as doenças são caracterizadas, fundamentalmente, pela sua capacidade de causar enfermidade, entendida como uma experiência objetiva e subjetiva de saúde prejudicada. A enfermidade implica um desvio do funcionamento saudável de órgãos, tecidos ou do indivíduo como um todo. Geralmente está associada a manifestações clínicas específicas — físicas e bioquímicas — que podem ser usadas como critérios para o diagnóstico da doença.
Embora um processo de doença possa existir na ausência de enfermidade manifesta (por exemplo, uma malignidade em fase inicial que ainda não apresenta sinais ou sintomas), a enfermidade é a característica distintiva de uma doença e ocorrerá como parte da evolução típica dessa doença.
As manifestações clínicas específicas de uma enfermidade podem ser ou não únicas (patognomônicas) da doença, mas frequentemente se agrupam em um fenótipo clínico distintivo. As enfermidades também apresentam uma evolução típica ao longo do tempo, com agravamento da disfunção orgânica e complicações características, determinando, em última instância, o prognóstico da doença.
O reconhecimento das manifestações clínicas típicas de uma enfermidade (físicas ou bioquímicas) permite que uma doença seja detectada (ou seja, diagnosticada) e diferenciada de outras (diagnóstico diferencial).
Por exemplo, reconhecemos o diabetes como um estado de doença (com subtipos) devido à sua capacidade de causar uma enfermidade típica, caracterizada por um grupo distinto de sinais e sintomas físicos (como poliúria, polidipsia, fadiga ou fome excessiva) e alterações bioquímicas (como hiperglicemia, hiperinsulinemia ou deficiência de insulina), que refletem disfunção de órgãos específicos. Essa disfunção orgânica pode piorar ao longo do tempo, com uma evolução característica que leva a complicações específicas em órgãos-alvo (por exemplo, cegueira, infarto do miocárdio, acidente vascular cerebral ou insuficiência renal).
As doenças também podem ter um efeito clínico mais amplo, além de causar enfermidade específica.
Devido aos seus mecanismos fisiopatológicos subjacentes, as doenças podem predispor, facilitar ou agravar outras doenças, especialmente aquelas com causas ou fisiopatologias parcialmente sobrepostas. Sinais e sintomas de uma doença podem ser comuns a outras, frequentemente representando desafios para o diagnóstico diferencial. Muitas vezes, a evolução temporal da enfermidade, com o desenvolvimento de sinais clínicos e bioquímicos adicionais e característicos, é o que facilita o diagnóstico diferencial (Painel 3).
Painel 3
Definição de doença e enfermidade na medicina
As doenças são caracterizadas por:
• Uma patofisiologia distinta que pode causar alterações em um único órgão ou em múltiplos órgãos (doenças sistêmicas).
• A capacidade de causar uma enfermidade específica, entendida como uma experiência objetiva e subjetiva de saúde prejudicada.
O que é uma enfermidade?
• Enfermidade implica um desvio do funcionamento normal de órgãos, tecidos ou do indivíduo como um todo, e está tipicamente associada a manifestações clínicas específicas — físicas e bioquímicas — que podem ser usadas como critérios para o diagnóstico de uma doença.
É importante que os critérios diagnósticos para uma doença sejam suficientemente precisos para detectá-la (ou seja, sensibilidade) e distingui-la (ou seja, especificidade) de outras doenças. No entanto, algumas condições apresentam patofisiologia e manifestações clínicas semelhantes (por exemplo, lúpus e síndrome de Sjögren, ou doença de Crohn e colite ulcerativa), o que representa desafios para o diagnóstico diferencial.
* Doenças crônicas
Algumas doenças crônicas podem ter origem em um tecido ou órgão, mas sua patofisiologia pode afetar diretamente a estrutura, a função ou ambas, de vários outros órgãos e tecidos, gerando uma forma sistêmica da doença com múltiplas manifestações clínicas, além de evolução e prognóstico característicos.
As doenças crônicas geralmente progridem gradualmente ao longo de um período prolongado e persistem por um ano ou mais. Exemplos incluem doenças cardiovasculares, reumatológicas, neurológicas, gastroenterológicas e diabetes. Essas doenças frequentemente coexistem com outras condições de saúde, o que agrava seus efeitos na qualidade de vida, aumenta o risco de incapacidade e mortalidade prematura.
* Efeito do diagnóstico de doenças crônicas no indivíduo afetado
A natureza crônica e, frequentemente, incurável dessas condições gera a percepção de que a doença afetará todos os aspectos da vida de uma pessoa. Preocupações sobre o impacto da doença na capacidade de realizar atividades diárias normais e na qualidade de vida geral podem levar a uma ansiedade substancial quanto à habilidade do indivíduo de trabalhar, gerar renda e sustentar sua família, entre outras coisas. Pessoas diagnosticadas com doenças crônicas também costumam temer a mortalidade prematura. Assim, o diagnóstico de uma doença tem profundos efeitos psicológicos, que se somam aos impactos na saúde impostos pela condição.
Por todas essas razões, o diagnóstico preciso de doenças é fundamental. Os clínicos devem garantir que as doenças sejam detectadas de forma precisa para permitir o acesso oportuno aos cuidados. No entanto, devem evitar o sobrediagnóstico de doenças crônicas, já que isso pode acarretar consequências consideráveis e desnecessárias para o indivíduo afetado e para a sociedade em geral.
* Critérios para o diagnóstico de doenças em especialidades médicas além da obesidade
Analisar as definições e os diagnósticos de doenças crônicas em outras especialidades médicas pode destacar diferenças em relação à obesidade que dificultam sua conceituação como uma doença. Esse exercício também pode facilitar o desenvolvimento de modelos diagnósticos apropriados para a obesidade.
* Doenças mediadas pelo sistema imunológico
Muitas doenças mediadas pelo sistema imunológico (por exemplo, doenças reumatológicas) geralmente causam enfermidades crônicas e sistêmicas. Essas doenças têm origem ou inicialmente afetam o tecido conjuntivo, induzindo alterações estruturais e funcionais em vários órgãos, incluindo articulações, tendões, ligamentos, ossos, músculos, coração e pulmões. As doenças reumatológicas podem ter causas autoimunes, mas sua etiologia exata muitas vezes é desconhecida. As manifestações clínicas refletem alterações estruturais e funcionais nas articulações e outros órgãos, com sinais como sensibilidade, eritema, inchaço ou edema, alterações no movimento articular, função prejudicada e redução da qualidade de vida.
Embora diversas doenças mediadas pelo sistema imunológico possam apresentar manifestações clínicas sobrepostas, diferenças no início, local e tempo dos sintomas, bem como a presença ou ausência de alterações biológicas específicas e sua evolução típica ao longo do tempo, ajudam no diagnóstico diferencial. Por exemplo, as duas formas mais comuns de artrite (artrite reumatoide e osteoartrite) apresentam sinais clássicos de artropatia, o que frequentemente requer investigações diagnósticas adicionais, como exames de sangue e radiografias, para distingui-las.
* Condições de saúde mental
Os transtornos mentais são caracterizados por alterações na cognição, na regulação emocional e no comportamento.
Diversos tipos de transtornos mentais são definidos de acordo com critérios específicos no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais. O diagnóstico dessas condições exige a identificação de sintomas e sinais que indiquem a presença de disfunção interna.
Normalmente, vários sinais e sintomas, entre um conjunto de manifestações clínicas características, precisam estar presentes para confirmar o diagnóstico. Um exame detalhado desses sinais e sintomas é essencial para garantir um diagnóstico preciso.
* Opiniões dos comissários sobre obesidade como uma doença
A ideia de obesidade como uma doença também foi um tema controverso dentro desta Comissão. As opiniões iniciais divergiram substancialmente, indicando claramente que não seria possível alcançar um consenso sobre uma definição ampla de obesidade como doença, pelo menos da forma como está atualmente definida. Uma pesquisa específica pré-Delphi sobre a questão de se a obesidade é uma doença mostrou que mais da metade dos comissários rejeitou o cenário de “tudo ou nada” implícito na pergunta, mas apoiou a visão de que a obesidade é um fator de risco para outras doenças e, em alguns casos, uma doença por si só. Apenas cerca de um terço apoiou a ideia de obesidade como uma doença, enquanto o restante dos comissários não considerou a obesidade uma doença.
Os principais argumentos a favor da obesidade como uma doença incluíram:
• Evidências de que o excesso de adiposidade está associado a mecanismos patogênicos claros (por exemplo, inflamação, desequilíbrios hormonais, alterações na regulação do apetite ou saciedade e resistência à insulina);
• Aumento do risco de mortalidade;
• Persistência e recorrência, mesmo após o tratamento, consistentes com um processo de doença crônica e recorrente;
• Associação clara do excesso de adiposidade com complicações ou doenças relacionadas que comprometem a saúde.
Os principais argumentos contra a obesidade como uma doença, pelo menos como atualmente definida, incluíram:
• Algumas pessoas com níveis de IMC iguais ou superiores aos limiares tradicionais de obesidade não possuem excesso de adiposidade (como atletas ou pessoas com maior massa magra que a média);
• Um número substancial de indivíduos com excesso de adiposidade não apresenta sinais óbvios de doença em curso;
• Embora exista uma relação clara entre IMC, adiposidade e prevalência de doenças em níveis populacionais, o IMC e a massa de gordura não fornecem informações sobre a saúde em nível individual.
Por essas razões, a definição atual de obesidade e os métodos centrados no IMC usados para sua detecção podem levar ao sobrediagnóstico de doenças em indivíduos que, de outra forma, seriam saudáveis (figura 1).
As evidências objetivas e a lógica por trás de ambas as perspectivas sugerem problemas fundamentais na forma como a obesidade é atualmente enquadrada e nos métodos utilizados para seu diagnóstico.
Os exemplos mencionados de outras doenças crônicas mostram que a noção de doença na medicina implica, essencialmente, na capacidade da doença de causar uma enfermidade, entendida como uma experiência humana de má saúde, caracterizada por manifestações clínicas distintas, secundárias a alterações contínuas no funcionamento de órgãos, tecidos ou ambos.
Em contraste com esses princípios médicos amplamente adotados, a definição atual de obesidade não fornece uma caracterização clara da enfermidade induzida pela própria obesidade. A narrativa sobre os efeitos clínicos da obesidade concentra-se, em vez disso, nos riscos relacionados à adiposidade de desenvolver outras doenças — ou seja, entidades clínicas distintas com sua própria fisiopatologia, manifestações clínicas, evolução e prognóstico.
A ausência de uma enfermidade claramente identificável causada pela obesidade não oferece um objeto para um diagnóstico preciso da doença, representando, assim, um grande obstáculo para a consideração da obesidade como uma doença (painel 4).
* Painel 4
* Doença ou não doença? Não é tudo ou nada
Como atualmente definida e medida, a obesidade não tem o mesmo significado em todos os indivíduos afetados. Nesse contexto, a questão de saber se a obesidade é uma doença é mal formulada, pois presume um cenário implausível de tudo ou nada, em que a obesidade é ou sempre uma doença, ou nunca uma doença.
De fato:
• Algumas pessoas com obesidade têm saúde objetiva comprometida devido à obesidade sozinha (ou seja, sintomas graves ou limitações das atividades diárias devido aos efeitos da obesidade nos sistemas pulmonar, cardiovascular ou musculoesquelético).
• Outras pessoas com obesidade podem ser capazes de manter o funcionamento normal dos órgãos e saúde substancialmente preservada a longo prazo.
• A adiposidade excessiva também pode ser um sinal de outras doenças ou um efeito colateral de diversos medicamentos.
• O IMC e outras medidas antropométricas podem subestimar e superestimar a adiposidade excessiva e não fornecem informações sobre o funcionamento dos órgãos e tecidos.
Implicações:
• A obesidade é uma condição heterogênea, e um fenótipo de obesidade não reflete necessariamente uma doença em andamento.
• As métricas de obesidade baseadas no IMC podem classificar incorretamente a adiposidade excessiva e poderiam tanto subdiagnosticar quanto sobre-diagnosticar a doença.
• É necessária uma definição clinicamente relevante de obesidade para facilitar um debate mais racional sobre a obesidade como uma doença.
Uma análise detalhada das limitações relacionadas à atual concepção da obesidade e aos métodos utilizados para seu diagnóstico é necessária para abordar as questões que dificultam o debate sobre a obesidade.
* Limitações da concepção atual da obesidade
* Questões conceituais e práticas na definição atual da obesidade
A obesidade é atualmente concebida e definida como uma condição de adiposidade excessiva que apresenta “risco para a saúde”. O diagnóstico atual de obesidade em todo o mundo é baseado no IMC, calculado como o peso em quilos dividido pela altura em metros ao quadrado. De acordo com a OMS, um adulto com IMC de 30 kg/m² ou superior é considerado obeso.
Essa definição foi amplamente adotada e utilizada em estudos epidemiológicos, prática clínica e políticas de saúde pública. No entanto, vários estudos mostraram que o IMC não reflete a distribuição de gordura corporal ou a saúde metabólica, e medidas alternativas, como a circunferência da cintura ou a porcentagem de gordura corporal, poderiam ser mais apropriadas. No entanto, o IMC continua sendo a medida mais comumente usada para a obesidade em todo o mundo e ajuda na identificação de indivíduos com risco de comorbidades relacionadas à obesidade.
Em uma pesquisa sobre as opiniões iniciais dos comissários, uma grande maioria do grupo (~70%) concordou que a definição atual de obesidade (“acúmulo anormal ou excessivo de gordura que apresenta risco para a saúde”) não é consistente com a noção de um estado de doença independente.
Essa avaliação foi baseada principalmente em dois argumentos. Primeiro, o foco exclusivo no risco na definição de obesidade implica que a doença ainda não se manifestou (e pode, ao menos teoricamente, nunca se manifestar). Essa possibilidade é objetivamente verdadeira para algumas pessoas com obesidade, que parecem ser capazes de viver uma vida relativamente saudável por muitos anos ou até uma vida inteira. De fato, pode-se argumentar legitimamente que um fator de risco não é necessariamente uma doença, e que uma doença deve ser diagnosticada quando ocorre, não antes.
Muitas condições podem predispor alguém a uma doença futura, mas não são consideradas doenças em si.
Por exemplo, embora a gamopatia monoclonal de significância indeterminada possa ser um precursor do mieloma múltiplo, não é considerada uma doença em si.
Segundo, o risco associado à obesidade não se refere a uma doença específica, mas a um grande número de outras doenças, incluindo diabetes tipo 2, câncer e distúrbios mentais. Independentemente da causalidade dessas associações, essas condições são doenças por si mesmas e não podem ser configuradas como expressões de um único processo patológico.
Assim, se a obesidade fosse apenas uma condição de risco para a saúde (conforme sua definição atual), seria difícil entender por que deveria ser considerada uma doença.
No entanto, há ampla evidência de que a adiposidade excessiva pode induzir diretamente alterações estruturais e funcionais em múltiplos tecidos e órgãos (por exemplo, fígado, coração, pulmões, rins e sistema musculoesquelético), causando um estado de saúde objetivamente comprometido, independentemente do aparecimento de outras doenças. Portanto, uma definição mais precisa de obesidade—consistente com a evidência de que o risco para outras doenças e a doença em curso podem estar associados à adiposidade excessiva—é necessária para explicar o efeito completo da obesidade sobre a saúde.
A Comissão também identificou outras limitações na definição atual de obesidade. Uma limitação importante é a falta de clareza sobre se a função anormal (metabólica, endócrina ou ambas) do tecido adiposo e a massa excessiva de tecido adiposo devem estar presentes para definir a obesidade. Houve um consenso geral entre os comissários de que a função anormal do tecido adiposo resulta em várias perturbações da fisiologia, como resistência à insulina, contribuindo crucialmente para as consequências metabólicas da obesidade. No entanto, as alterações na função do tecido adiposo nem sempre são necessárias para o efeito da obesidade na saúde, pois isso também pode ocorrer por meio de outros mecanismos. De fato, os efeitos físicos da massa de gordura excessiva sobre os órgãos (por exemplo, capacidade pulmonar restrita e complicações musculoesqueléticas) ou sobre o indivíduo como um todo podem afetar a saúde na ausência de alterações funcionais. Por outro lado, o tecido adiposo disfuncional pode induzir resistência à insulina e alterações metabólicas na ausência de adiposidade excessiva (por exemplo, lipodistrofia). Assim, uma definição precisa de obesidade deve deixar claro que a massa de gordura excessiva é a característica fundamental da obesidade, enquanto a função anormal do tecido adiposo pode ou não fazer parte da obesidade (ou seja, obesidade deve ser definida pela massa de gordura excessiva, com ou sem função anormal).
* A questão do IMC
A definição atual de obesidade com base no IMC apresenta várias limitações.
O IMC não diferencia entre massa gorda e massa magra, nem leva em conta as diferenças na distribuição de gordura corporal. Como resultado, alguns indivíduos com IMC na faixa considerada normal ou acima do peso (por exemplo, 18,5–29,9 kg/m² em indivíduos de descendência europeia) podem ter excesso de gordura corporal e estar em risco aumentado de morbidade relacionada à obesidade. Por exemplo, o IMC pode subestimar a massa de gordura em idosos, em indivíduos que perderam massa óssea ou muscular, e em pessoas de certas etnias (por exemplo, populações asiáticas), levando ao subdiagnóstico da obesidade.
Por outro lado, alguns indivíduos com IMC na faixa atualmente definidora de obesidade (>30 kg/m² em indivíduos de descendência europeia) não têm excesso de massa gorda e não estão em risco aumentado de morbidade ou mortalidade. Por exemplo, em pessoas com mais massa óssea ou muscular esquelética, como atletas, o IMC pode superdiagnosticar a obesidade; exemplos famosos de tais erros de classificação são boxeadores lendários e quarterbacks da National Football League dos EUA.
A associação entre obesidade baseada no IMC e mortalidade é, na verdade, em forma de U, com fatores como histórico de tabagismo, doenças ocultas, perda de peso não intencional recente, variabilidade de peso e padrão de distribuição de gordura corporal influenciando a forma da curva IMC versus mortalidade.
Além disso, a qualidade geral da dieta e o nível de atividade física ou aptidão são moduladores potentes do risco associado a qualquer valor de IMC, independentemente da composição corporal. No entanto, eliminar indivíduos da análise com base nesses fatores pode plausivelmente criar vieses.
Medidas alternativas, como a circunferência da cintura ou a porcentagem de gordura corporal, podem ser mais precisas para detectar o excesso de adiposidade e, portanto, como medidas dos riscos à saúde relacionados à obesidade. Por exemplo, muitos estudos populacionais mostraram que, dentro de cada categoria de IMC considerada, quanto maior a circunferência da cintura, maior o risco de morbidade ou mortalidade.
Além de potencialmente classificar erroneamente o excesso de adiposidade em si, o IMC não fornece informações sobre o estado funcional dos tecidos e órgãos, nem sobre a capacidade do indivíduo de realizar atividades diárias normais, que são dois critérios fundamentais para a avaliação da saúde de uma pessoa.
Assim, a definição atual de obesidade baseada no IMC pode subestimar ou superestimar tanto a adiposidade quanto a doença (figura 2).
O risco de subdiagnóstico pode atrasar ou até impedir o acesso ao tratamento; no entanto, o risco de superdiagnosticar a obesidade é particularmente preocupante devido às suas possíveis ramificações negativas para os sistemas de saúde e para a sociedade.
Uma consequência prática de definir a obesidade como uma doença, sob a definição atual baseada no IMC, é que aproximadamente 30-40% das pessoas em alguns países seriam diagnosticadas com essa doença agora e, de imediato, se tornariam elegíveis para alegações de invalidez ou tratamentos caros (e potencialmente desnecessários). Tais alegações tornariam a obesidade uma questão financeiramente e socialmente intransponível.
Embora não seja apropriado usá-lo como parâmetro clínico, o IMC continua sendo uma medida universalmente aceita de obesidade no nível individual. De fato, os limites do IMC são rotineiramente usados na prática clínica para classificar a gravidade da obesidade (classe 1, 2 ou 3 [por exemplo, IMC de 30–34,9 kg/m², 35–39,9 kg/m² ou >40 kg/m², respectivamente, para indivíduos de descendência europeia]), estabelecer indicações para intervenções terapêuticas ou decidir a cobertura de seguros para tratamentos da obesidade. O mais crucial é que o IMC se tornou uma parte integral da definição atual de obesidade, pois a maioria dos serviços de saúde, organizações médicas e agências de saúde pública recomenda o uso de um limite de IMC (ou seja, 30 kg/m² em indivíduos de descendência europeia) para diagnosticar obesidade.
Por todas essas razões, o uso do IMC para o diagnóstico da obesidade representa uma barreira importante tanto para a compreensão quanto para a aceitação da obesidade como uma doença.
Diversas organizações profissionais, incluindo a American Association of Clinical Endocrinology e a European Association for the Study of Obesity, recomendaram a consideração de anomalias fisiopatológicas na massa, distribuição e função do tecido adiposo como mais apropriadas do que os critérios centrados no IMC para avaliar o efeito do excesso de adiposidade na saúde.
Houve um forte consenso entre os comissários (98%) de que o uso do IMC deve ser restrito ao rastreamento de pacientes com possível obesidade (tabela 1), enquanto medidas adicionais de adiposidade são essenciais para confirmar o status de obesidade (ou seja, excesso de adiposidade) no nível clínico. Além dessas medidas adicionais, critérios objetivos e clinicamente significativos para obesidade devem ser usados para a avaliação da saúde ou doença de um indivíduo.
* Limitações de outras medidas antropométricas de adiposidade
Outras medidas antropométricas, como circunferência da cintura, relação cintura-quadril e relação peso-altura, foram sugeridas como métodos alternativos ao IMC para diagnóstico da obesidade. No entanto, essas medidas antropométricas também apresentam limitações notáveis.
As medições da circunferência da cintura e da relação cintura-quadril podem variar entre populações e entre sexos. Essas medições podem não refletir com precisão a acumulação de gordura subcutânea e visceral, que está fortemente associada ao aumento do risco de doenças metabólicas.
Além disso, pessoas com acúmulo semelhante de gordura visceral podem apresentar perfis de fatores de risco diferentes. Outros depósitos de gordura ectópica, incluindo gordura no fígado, também contribuem para variações no risco à saúde.
Embora o uso de medidas antropométricas como alternativas ou em adição ao IMC possa melhorar a detecção do excesso de adiposidade e a previsão do risco cardiometabólico, assim como o IMC, elas não são uma medida robusta de doença em andamento.
As medidas antropométricas foram amplamente estudadas como preditores de risco metabólico, mas muito menos como um sinal de disfunção orgânica contínua causada pela obesidade. Assim, como no caso do IMC, métodos diagnósticos exclusivamente baseados em medidas antropométricas podem subdiagnosticar ou superdiagnosticar doenças.
Adicionar marcadores bioquímicos, como os níveis de triglicerídeos plasmáticos, à medição da circunferência da cintura—um fenótipo descrito como cintura hipertrigliceridêmica—foi sugerido como um método útil para identificação de indivíduos com excesso de tecido adiposo visceral e gordura ectópica.
Novamente, essa abordagem pode aumentar a precisão na identificação de indivíduos com maior risco de desenvolver doenças cardiovasculares no futuro, mas preocupações permanecem quanto à sua validade como medida de doença em andamento.
Sem uma definição clara da doença causada pela obesidade, não é possível estabelecer quais biomarcadores e com quais limiares específicos têm validade clínica objetiva como medidas de doença na obesidade. Além disso, a disponibilidade e o custo dos testes bioquímicos podem limitar sua implementação em larga escala na prática clínica, especialmente no contexto da confiabilidade variável.
* Caracterização clínica atual da obesidade
*
A narrativa tradicional sobre o efeito da obesidade na saúde enfatiza as associações entre o excesso de adiposidade e várias doenças e condições. Embora tal narrativa tenha mérito ao alertar clínicos, formuladores de políticas, pacientes e o público sobre a necessidade de levar a obesidade a sério, ela pode contribuir para equívocos na forma como a obesidade é abordada clinicamente, em comparação com outras doenças crônicas.
Descrever o efeito da obesidade na saúde por meio de outras doenças implica, de forma inerente, que o aparecimento de outras doenças seja necessário para que a obesidade cause problemas de saúde. De forma consistente, sistemas de pontuação e estadiamento da obesidade, assim como políticas de cobertura de tratamentos, estimam o efeito clínico da obesidade com base na presença de outras doenças, frequentemente chamadas de comorbidades.
Essas práticas levam efetivamente a um paradoxo, onde pessoas com problemas de saúde objetivos causados exclusivamente pela obesidade (ou seja, sintomas graves ou limitações nas atividades diárias devido aos efeitos da obesidade nos sistemas pulmonar, cardiovascular ou musculoesquelético) podem ser negadas acesso ao tratamento devido à falta das comorbidades supostas. Esse paradoxo é evidente nas políticas regulatórias e de seguro para medicamentos antiobesidade e cirurgias bariátricas ou metabólicas, que exigem a presença de uma ou mais comorbidades para indicar e cobrir o tratamento.
A narrativa convencional sobre os efeitos da obesidade na saúde também pode contribuir para a controvérsia sobre a ideia de obesidade como uma doença. Os defensores da ideia de obesidade como doença consideram as fortes e possivelmente causais ligações entre obesidade e diabetes tipo 2 ou câncer como uma demonstração razoável de que a obesidade em si é uma doença. No entanto, os críticos da ideia argumentam que, se o aparecimento de outra doença, com sua própria fisiopatologia e manifestações clínicas, for necessário para que a obesidade cause doenças, então a ideia de obesidade como uma doença independente é falha do ponto de vista lógico, fisiopatológico e clínico.
Esses argumentos aparentemente irreconciliáveis resultam de uma narrativa que destaca apenas evidências parciais e indiretas dos efeitos negativos do excesso de adiposidade na saúde, sem reconhecer as consequências diretas da obesidade em si sobre os tecidos e órgãos, com a consequente doença (figura 1).
Painel 5
Definição e diagnóstico da obesidade clínica
O que é obesidade clínica?
A obesidade clínica é uma doença crônica resultante de alterações na função de órgãos ou do organismo como um todo, induzidas diretamente pelo excesso de adiposidade, independentemente da presença de outras doenças relacionadas à adiposidade. Ela pode levar a complicações que alteram a vida ou que ameaçam a vida.
O que caracteriza a obesidade clínica?
Uma combinação de um fenótipo de obesidade com sinais, sintomas, limitações das atividades diárias ou qualquer combinação destes.
A obesidade clínica é a mesma que a obesidade metabolicamente não saudável?
Não: a obesidade clínica não é uma medida de risco cardiometabólico, mas uma doença em andamento causada diretamente pelo excesso de adiposidade. A obesidade clínica pode resultar de alterações em órgãos não envolvidos na regulação metabólica. Assim, uma pessoa com sinais e sintomas musculoesqueléticos ou respiratórios devido ao excesso de adiposidade tem obesidade clínica, mesmo na presença de função metabólica normal.
Como diagnosticar a obesidade clínica?
O diagnóstico de obesidade clínica requer o cumprimento de ambos os seguintes critérios principais:
* Critério antropométrico
* Confirmação do excesso de gordura corporal por pelo menos outro critério antropométrico (exemplo, circunferência da cintura) ou por medição direta de gordura, se disponível, além do IMC. Pragmaticamente, no entanto, é razoável assumir a presença de excesso de adiposidade em pessoas com níveis muito elevados de IMC (exemplo, >40 kg/m2).
* Critérios clínicos (inclui um ou ambos os seguintes)
* Sinais ou sintomas de disfunção contínua dos sistemas de órgãos (ver tabela 2)
* Limitações ajustadas pela idade na mobilidade ou em outras atividades básicas da vida diária (exemplo, tomar banho, vestir-se, usar o banheiro, continência e alimentação)
Como a obesidade clínica deve ser tratada?
Pessoas com obesidade clínica devem ter acesso oportuno a cuidados abrangentes e tratamentos baseados em evidências, conforme apropriado para indivíduos com uma doença crônica e potencialmente ameaçadora ou que altera a vida.
* Painel 6
Definição de obesidade pré-clínica
O que é obesidade pré-clínica?
A obesidade pré-clínica é essencialmente um fenótipo físico, caracterizado pelo excesso de adiposidade e ausência de sinais e sintomas importantes de disfunções dos órgãos devido à obesidade.
A obesidade pré-clínica é um estado pré-doença?
Não, a obesidade pré-clínica é uma condição altamente heterogênea: em algumas pessoas, pode representar um estágio inicial da obesidade clínica (nesse caso, poderia ser um estado pré-doença), enquanto em outras pessoas, pode ser um fenótipo com menor tendência a afetar diretamente a função dos órgãos, ou um sinal de outras doenças ou efeitos colaterais de medicamentos.
A obesidade pré-clínica é a mesma coisa que sobrepeso ou pré-obesidade?
Não, a definição de obesidade pré-clínica implica na confirmação de níveis de adiposidade típicos da obesidade (não apenas um nível de sobrepeso no IMC), mais uma avaliação clínica da função preservada dos órgãos.
A obesidade pré-clínica é a mesma coisa que obesidade metabolicamente saudável?
Não, a obesidade pode induzir doenças afetando múltiplos órgãos, não apenas aqueles envolvidos na regulação metabólica. Assim, a obesidade pré-clínica indica a função preservada de todos os órgãos potencialmente afetados pela obesidade, não apenas os envolvidos na regulação metabólica.
Quais são as implicações clínicas da obesidade pré-clínica?
Pessoas com obesidade pré-clínica devem ser consideradas como tendo um risco variável, mas geralmente elevado (dependendo de idade, etnia, predisposição familiar, distribuição de gordura corporal, etc.), de desenvolver doenças relacionadas à obesidade, obesidade clínica em si ou ambos.
Como a obesidade pré-clínica deve ser tratada?
Pessoas com obesidade pré-clínica devem ser submetidas a triagem e monitoramento apropriados para garantir o diagnóstico precoce de possível obesidade clínica e outras doenças relacionadas à adiposidade. Alguns indivíduos com obesidade pré-clínica também devem ter acesso a tratamentos apropriados quando necessário para reduzir um risco substancialmente elevado de desenvolver obesidade clínica e outras doenças e condições relacionadas à obesidade, ou quando a redução da obesidade pode facilitar o manejo de outras doenças (exemplo: transplante, cirurgia ortopédica para outras condições e tratamento de certos cânceres).
Embora a obesidade exista em um continuum biológico, saúde e doença são condições dicotômicas que podem ser objetivamente diferenciadas e intuitivamente compreendidas tanto por clínicos quanto por pacientes. Diferenciar entre obesidade pré-clínica e clínica é uma abordagem prática e medicamente significativa para simplificar um problema de saúde que, de outra forma, seria complexo e talvez intratável.
* Recomendações da Comissão: definições e critérios diagnósticos da obesidade clínica
As conclusões e recomendações desta Comissão foram alcançadas por meio de extensa discussão de evidências e pontos de vista, além de um processo formal de desenvolvimento de consenso para gerar recomendações respaldadas pela maior parte do grupo de especialistas. Todas as definições, recomendações e critérios diagnósticos foram acordados por um nível de consenso unânime ou quase unânime dentro do grupo de especialistas. Todas as conclusões e recomendações baseadas em consenso, cada uma com seu grau relacionado de concordância, estão apresentadas nas tabelas 1–3. Os critérios diagnósticos da obesidade clínica em adultos, crianças e adolescentes são apresentados de forma resumida nas figuras 6 e 7.
* A obesidade como uma doença
O trabalho desta Comissão focou em uma questão prática (e solucionável): a obesidade pode causar diretamente doenças crônicas, independentemente da presença de outras doenças relacionadas à obesidade?
Para estabelecer se a obesidade é uma doença em si mesma, seria necessário primeiro saber se o excesso de adiposidade pode induzir diretamente disfunção nos órgãos e como seria a doença resultante.
* Definindo a doença na obesidade
Há evidências objetivas de que a obesidade pode causar doenças ao induzir diretamente disfunções em vários órgãos e tecidos. No entanto, reconhecemos que a obesidade não tem o mesmo significado em todos os indivíduos afetados. Nem todas as pessoas com excesso de adiposidade têm uma doença em andamento; algumas pessoas com obesidade podem ser capazes de manter a função normal dos órgãos e uma saúde substancialmente preservada a longo prazo. Além disso, o excesso de adiposidade pode ser um sinal de outras doenças ou um efeito colateral de diversos medicamentos. Portanto, a obesidade é uma condição heterogênea, e um fenótipo de obesidade não reflete necessariamente uma doença em andamento. O IMC e as medidas antropométricas não fornecem informações sobre a função dos órgãos ou limitações nas atividades da vida normal; portanto, não permitem discriminar entre saúde e doença no nível individual. Por essa razão, as medidas antropométricas da obesidade só podem ser usadas como medidas de risco para futuras doenças relacionadas à obesidade ou mortalidade, não como doença em andamento. Com o conhecimento atual, a doença causada pela obesidade só pode ser definida pela presença de manifestações clínicas de função orgânica anormal.
Portanto, os comissários concordaram que é necessário um reexame da obesidade para refletir a natureza complexa e heterogênea dessa condição e fornecer uma melhor caracterização de seu efeito sobre a saúde, incluindo a capacidade da obesidade de causar doenças como resultado direto do excesso ou da adiposidade anormal.
Definimos tal doença como obesidade clínica e propomos critérios objetivos para seu diagnóstico.
* Definições gerais de obesidade e suas causas, e efeitos na saúde
A definição otimizada de obesidade proposta por esta Comissão — a obesidade é caracterizada pelo excesso de adiposidade, com ou sem distribuição ou função anormal do tecido adiposo (tabela 1) — esclarece que o excesso de adiposidade é a condição necessária para a presença de obesidade.
Anormalidades na distribuição do tecido adiposo, função ou ambos, podem fazer parte da obesidade e desempenham papéis importantes na identificação do efeito da obesidade sobre a saúde, particularmente devido à sua associação com disfunção metabólica. A presença dessas anomalias, no entanto, não é suficiente para atender à definição de obesidade na ausência de excesso de adiposidade. No entanto, a obesidade pode existir na ausência de anomalias na distribuição de gordura ou função do tecido adiposo. Assim, a distribuição e a função anormais da gordura podem caracterizar subtipos de obesidade, mas a obesidade (ou seja, excesso de adiposidade) também pode existir apesar da distribuição e função normais da gordura.
Esse esclarecimento permite distinguir a obesidade de outros distúrbios do tecido adiposo, como as lipodistrofias, nas quais anormalidades da função e depósito do tecido adiposo podem causar doenças metabólicas na ausência de obesidade. A Comissão também reconhece que as causas da obesidade são multifatoriais, reconhecendo que permanecem incompletamente compreendidas, o que reflete a evidência científica de uma causa e fisiopatologia complexas, em contraste com a noção simplista e difundida da obesidade como uma mera questão de estilo de vida.
* Definições de obesidade clínica e pré-clínica
O excesso de adiposidade pode induzir diretamente a doenças (ou seja, obesidade clínica), além de ser um prenúncio de outras doenças e condições (ou seja, um risco para a saúde). Assim como outras doenças crônicas, a obesidade clínica resulta de alterações na função dos órgãos, do organismo como um todo ou de ambos, diretamente induzidas pelo excesso de adiposidade.
Essa definição de obesidade clínica (tabela 1) preenche uma lacuna conceitual importante e fornece uma identidade nosológica distinta à obesidade, definida por evidências objetivas de doença, e não apenas por um fenótipo físico.
Embora a obesidade deva ser concebida biologicamente como um contínuo, saúde e doença são tipicamente (e necessariamente) definidas como condições distintas e dicotômicas no nível clínico. Portanto, distinguimos pragmáticamente a obesidade clínica da obesidade pré-clínica, com base na presença ou ausência, respectivamente, de alterações sintomáticas na função dos órgãos ou comprometimento da capacidade do indivíduo de realizar atividades diárias. Na prática, essa reformulação fornece um mecanismo clinicamente significativo para informar o diagnóstico, a tomada de decisões clínicas e, de forma importante, as políticas de saúde.
Um diagnóstico de obesidade clínica deve ter as mesmas implicações que outros diagnósticos de doenças crônicas. Os pacientes diagnosticados com obesidade clínica devem, portanto, ter acesso oportuno e equitativo a cuidados abrangentes e tratamentos baseados em evidências.
A caracterização da obesidade pré-clínica e clínica nesta Comissão não tem a intenção de traçar uma linha exata entre um estado de doença e um estado não-doença ou entre diferentes estágios biológicos do mesmo processo de doença (ou seja, pré-doença e doença). Assim, embora o termo obesidade clínica identifique uma doença e possa ser considerado como um estado de doença, a obesidade pré-clínica não é equivalente a um estado de pré-doença da mesma forma que, por exemplo, o pré-diabetes. Essa diferença ocorre porque a obesidade pré-clínica (um fenótipo de obesidade) é uma condição heterogênea: ela pode representar um estágio inicial da obesidade clínica (e nesse caso poderia ser um estado de pré-doença), um fenótipo físico com menor tendência de afetar diretamente a função dos órgãos, ou um sinal de outras doenças ou efeitos colaterais de medicamentos. A probabilidade e a taxa de progressão da obesidade pré-clínica para a obesidade clínica são desconhecidas e precisam de investigação. Portanto, a obesidade pré-clínica confere um risco variável (dependendo da idade, etnia, predisposição familiar, distribuição de gordura corporal, etc.) de desenvolver doenças relacionadas à obesidade, obesidade clínica em si, ou ambos. Por essa razão, pessoas com obesidade pré-clínica merecem monitoramento do seu estado de saúde ao longo do tempo e podem precisar de intervenções apropriadas para reduzir o risco individual (veja a seção Gestão da obesidade pré-clínica).
É importante destacar que o significado de obesidade pré-clínica não coincide com os termos sobrepeso ou pré-obesidade (definidos como um IMC de 25,0–29,9 kg/m²). Na verdade, a definição de obesidade pré-clínica implica a confirmação de excesso de adiposidade (não apenas um nível de sobrepeso no IMC), além de uma avaliação clínica da função dos órgãos preservada. No entanto, como o IMC pode subestimar o excesso de adiposidade, alguns indivíduos tradicionalmente classificados como tendo sobrepeso ou pré-obesidade podem ter obesidade pré-clínica ou clínica.
Como saúde ou doença não são definidos exclusivamente por anomalias metabólicas, a obesidade pré-clínica e clínica não coincidem com as distinções previamente propostas de obesidade metabolicamente saudável ou metabolicamente não saudável. Por um lado, a obesidade pré-clínica é, de fato, definida pela ausência de disfunção substancial dos órgãos (não apenas anomalias metabólicas). Por outro lado, a obesidade clínica pode existir na ausência de disfunção metabólica, por exemplo, se outras disfunções não metabólicas, como disfunções cardiovasculares, respiratórias ou musculoesqueléticas, estiverem presentes.
* Definições de comorbidades, complicações e doenças relacionadas à obesidade
Os termos comorbidades, complicações e doenças relacionadas à obesidade são frequentemente considerados sinônimos de forma inadequada quando usados em relação à obesidade. Para facilitar a padronização da linguagem e a consistência com o uso dessa nomenclatura em outras áreas da medicina, distinguimos comorbidades de complicações e doenças ou distúrbios relacionados à obesidade (tabela 1). O termo comorbidades deve ser usado apenas para se referir a doenças e condições que coexistem incidentalmente com a obesidade, podendo complicar o manejo do paciente, mas que não são causadas ou facilitadas pela obesidade. Definimos doenças relacionadas à obesidade como outras condições para as quais há uma relação plausível de causa e efeito, ou pelo menos uma sobreposição ou interação fisiopatológica clara (por exemplo, diabetes tipo 2 e certos tipos de câncer).
Embora o termo complicações se refira amplamente a qualquer evento adverso adicional que complique uma doença ou intervenção, no contexto de uma doença, o termo mais comumente indica o agravamento da disfunção de um órgão ou sistema de órgãos. Por exemplo, a pneumonia pode ser uma complicação de alterações no sistema respiratório superior causadas pela gripe, e a cegueira pode ser uma complicação de retinopatia causada por diabetes. Da mesma forma, propomos que as complicações da obesidade clínica se refiram ao agravamento da disfunção dos órgãos ou dano ao órgão final (por exemplo, infarto do miocárdio, acidente vascular cerebral e insuficiência renal).
* Remissão da obesidade clínica
Nossa definição de remissão da obesidade clínica é conceitualmente semelhante à ideia de remissão clínica para outras doenças (tabela 1) e se assemelha à definição atual de remissão do diabetes.
A obesidade clínica é definida pela presença de manifestações clínicas; assim, a remissão deve ser definida pela resolução dessas manifestações. É plausível supor que a resolução das manifestações da obesidade clínica (ou seja, a restauração da função normal dos órgãos) deva ter um efeito positivo na experiência de doença do indivíduo e na qualidade de vida. Se a remissão da obesidade clínica também coincide com uma menor probabilidade de progressão futura para danos nos órgãos finais ou complicações da obesidade clínica ainda é desconhecido. São necessários estudos para investigar a probabilidade e a frequência da remissão em resposta a vários tratamentos para obesidade e seu significado para o prognóstico. É importante observar que, assim como para o diabetes tipo 2 e outras doenças crônicas, a remissão da obesidade clínica não equivale a cura.
No entanto, a remissão ou melhoria da obesidade clínica deve representar um novo tipo de resultado de tratamento na obesidade, o que é provavelmente mais significativo do que a perda de peso em si.
* Avaliação clínica do status da obesidade
A obesidade é definida pelo excesso de adiposidade. Portanto, a verificação do excesso de adiposidade é necessária para confirmar o status da obesidade para fins de avaliação clínica. Como o IMC pode superestimar ou subestimar a presença de excesso de adiposidade, especialmente em níveis próximos aos limiares tradicionais usados para a definição de obesidade, recomendamos que o status da obesidade seja verificado por pelo menos uma medida antropométrica adicional (por exemplo, circunferência da cintura, razão cintura-quadril ou razão cintura-altura) ou, quando disponível, medição direta da massa de gordura (por exemplo, por DEXA ou bioimpedância; tabela 1). Essa abordagem reduz fortemente, embora não elimine, o risco de erro de classificação e tanto o diagnóstico excessivo quanto o subdiagnóstico do status da obesidade.
Na prática, em pessoas com um IMC que apresente valores iguais ou superiores aos limiares aceitos para idade, sexo ou país, obter pelo menos uma outra medida antropométrica do excesso de adiposidade mitiga o risco de diagnóstico excessivo da obesidade, especialmente em atletas ou pessoas com maior massa magra. No entanto, para pessoas com um valor de IMC próximo, mas abaixo, dos limiares para obesidade, a medição direta de gordura (quando disponível) ou o uso de duas outras medidas antropométricas consistentes com excesso de adiposidade pode confirmar o status da obesidade, independentemente do IMC.
Da mesma forma, indivíduos que apresentem manifestações típicas de obesidade clínica podem ter valores de IMC abaixo dos limiares recomendados e devem ser diligentemente avaliados quanto à presença de excesso de adiposidade com medições alternativas.
Para todas as medidas antropométricas, assim como para o IMC, recomendamos o uso de métodos validados e pontos de corte apropriados para idade, sexo e etnia ou país (veja o apêndice 2, pp 13–15).
Embora o risco de erro de classificação da obesidade seja menos relevante em pessoas com IMC muito alto (por exemplo, >40 kg/m²), é difícil, com o conhecimento atual, recomendar limiares específicos de IMC para verificação do excesso de adiposidade entre indivíduos de diferentes idades, etnias ou níveis de condicionamento físico. O status da obesidade, no entanto, pode ser razoavelmente assumido em pessoas com IMC muito alto, obviando, de forma pragmática, a necessidade de avaliação demorada de múltiplas medidas antropométricas.
* Princípios para o diagnóstico da obesidade clínica
A definição de obesidade clínica implica a combinação de um fenótipo de obesidade com evidências objetivas e específicas de doença em andamento devido à obesidade (tabela 1). Assim, o diagnóstico de obesidade clínica requer a confirmação do status de obesidade por meio do cumprimento dos critérios antropométricos (um componente antropométrico) mais sinais ou sintomas de anomalias na função de um ou mais sistemas de tecidos ou órgãos, limitações substanciais (ajustadas por idade) das atividades diárias ou ambos (um componente clínico). As limitações das atividades diárias devem refletir o efeito específico da obesidade sobre a mobilidade, outras atividades básicas da vida diária (por exemplo, tomar banho, vestir-se, usar o banheiro, continência e alimentação) ou ambos. As limitações ajustadas por idade das atividades da vida diária requerem um processo de diagnóstico diferencial, avaliando o papel relativo da obesidade e outras causas, incluindo a própria idade.
* Critérios diagnósticos para obesidade clínica
Critérios diagnósticos propostos para a obesidade clínica em adultos e em crianças e adolescentes estão detalhados na tabela 2 e apresentados de forma sinótica nas figuras 6 e 7.
É importante notar que todos os critérios diagnósticos de obesidade clínica assumem a exclusão de causas óbvias de disfunção orgânica ou sinais e sintomas. De forma semelhante ao diagnóstico de outras doenças crônicas, os critérios diagnósticos para obesidade clínica não incluem todas as possíveis manifestações clínicas ou complicações da obesidade clínica.
Essa abordagem visa proporcionar uma sensibilidade robusta para a detecção de doenças (ou seja, funcionamento fisiológico anormal de um ou mais órgãos) e especificidade de tal doença, como sendo causada pela obesidade (excluindo causas óbvias de disfunção).
Semelhante aos princípios usados no diagnóstico de outras doenças, os critérios diagnósticos da Comissão para obesidade clínica incluem apenas alterações individuais da função orgânica, não doenças em si mesmas. Os critérios recomendados por esta Comissão são uma diferença chave em relação aos métodos tradicionalmente usados para avaliar o efeito da obesidade sobre a saúde. Sistemas tradicionais de classificação e pontuação da obesidade e políticas de seguro de saúde tipicamente incluem uma mistura de alterações individuais na estrutura ou função dos órgãos (por exemplo, MASLD) e doenças em si mesmas (por exemplo, diabetes tipo 2, osteoartrite e câncer)—todas incorretamente referidas como comorbidades ou complicações. Embora esses métodos tenham mérito, pois refletem a saúde geral de um indivíduo e o risco de mortalidade futura, eles implicitamente carecem de especificidade como métodos diagnósticos da obesidade como uma doença em si mesma. Toda doença é caracterizada por sua distinta fisiopatologia, manifestações clínicas, evolução e prognóstico. Portanto, usar um estado de doença como critério diagnóstico para outra doença seria contraditório do ponto de vista lógico e também prejudicaria o diagnóstico diferencial, pois tornaria as doenças indistinguíveis entre si.
Essa questão foi um ponto importante de discussão para os comissários, especialmente em relação à consideração do diabetes tipo 2 como um possível critério diagnóstico para obesidade clínica. O diabetes tipo 2 está fortemente associado à obesidade, tem sido tradicionalmente usado como um marcador do efeito clínico e da gravidade da obesidade, e é um critério usado em algoritmos de tratamento da obesidade e em políticas de acesso ao cuidado da obesidade. No entanto, o diabetes tipo 2 é diferente da hiperglicemia, que é um dos componentes do cluster metabólico que propomos como diagnóstico da obesidade clínica.
Embora o diagnóstico de diabetes tipo 2 atualmente se baseie na hiperglicemia como um biomarcador único (HbA1c ou glicemia), esse diagnóstico reflete um estado de doença caracterizado por sua própria fisiopatologia e manifestações clínicas distintas (por exemplo, fadiga, poliúria e polidipsia). No entanto, é importante notar que o diabetes tipo 2 é uma doença altamente heterogênea (alguns estudos sugerem que múltiplos subtipos podem existir), e sua fisiopatologia pode, portanto, incluir mecanismos adicionais de doença além daqueles diretamente associados à obesidade. Nesse contexto, a inclusão do diabetes tipo 2 (como doença) nos critérios diagnósticos para obesidade clínica reduziria a especificidade e potencialmente incluiria subtipos de diabetes que não podem ser totalmente justificados como relacionados ao excesso ou à adiposidade anormal.
De forma coerente com os princípios acima, os efeitos do excesso de adiposidade sobre os sistemas orgânicos envolvidos no metabolismo podem ser pragmaticamente detectados, com especificidade suficiente, por um conjunto de alterações bioquímicas que refletem os efeitos subsequentes da resistência à insulina e do acúmulo ectópico de gordura—mecanismos patogenéticos típicos da obesidade. O conjunto de critérios metabólicos recomendados por esta Comissão para diagnóstico de obesidade inclui tanto níveis diabéticos quanto não diabéticos de hiperglicemia, altas concentrações de triglicerídeos e baixos níveis de colesterol HDL.
Como qualquer outra doença crônica, nem todas as possíveis manifestações clínicas da obesidade clínica ocorrem no mesmo indivíduo, e diferentes manifestações clínicas têm efeitos distintos sobre a qualidade de vida e o prognóstico. Assim, a obesidade clínica é uma doença sistêmica e heterogênea com uma ampla gama de gravidade e prognóstico. A classificação da obesidade clínica, para refletir o efeito relativo dos critérios diagnósticos sobre a qualidade de vida e o prognóstico, estava além do escopo desta Comissão. O desenvolvimento futuro de sistemas específicos de classificação para obesidade clínica pode informar ainda mais a tomada de decisões clínicas e a priorização do tratamento.
* Recomendações para a prática clínica
Pessoas com adiposidade excessiva confirmada devem ser avaliadas para obesidade clínica a fim de descartar doenças em curso (painel 7).
A avaliação para obesidade clínica deve incluir, em um primeiro momento, uma avaliação completa do histórico médico da pessoa, um exame físico e exames laboratoriais padrão (incluindo hemograma completo, glicemia, perfil lipídico e testes de função renal e hepática). O histórico médico e os exames físicos devem incluir uma revisão dos sistemas para investigar a presença de sinais ou sintomas que possam sugerir obesidade clínica.
Exames diagnósticos adicionais devem ser realizados conforme apropriado, caso o histórico médico do paciente, o exame físico ou os exames laboratoriais padrão, ou qualquer combinação deles, sugiram a possibilidade de uma ou mais disfunções orgânicas ou de tecidos induzidas pela obesidade (figura 8; apêndice 2, pp 27–39).
* Painel 7
Recomendações para a prática clínica
Um diagnóstico de obesidade clínica deve ter as mesmas implicações que outros diagnósticos de doenças crônicas.
* Avaliação clínica
Pessoas com adiposidade excessiva confirmada devem ser avaliadas para obesidade clínica. Esta avaliação deve incluir:
* Histórico médico da pessoa
* Exame físico
* Exames laboratoriais padrão, incluindo hemograma completo, glicemia, perfil lipídico e testes de função renal e hepática
* Exames diagnósticos adicionais conforme apropriado, caso o histórico médico ou exame físico do paciente, ou exames laboratoriais padrão, ou ambos, sugiram a possibilidade de uma ou mais disfunções orgânicas ou de tecidos induzidas pela obesidade (para critérios diagnósticos, consulte a tabela 2, e as figuras 6 e 7)
Objetivos do tratamento na obesidade clínica
* Melhora (ou remissão quando possível) das manifestações clínicas da obesidade
* Prevenção da progressão para complicações adicionais ou danos a órgãos terminais
Resultados desejáveis do tratamento (para prática clínica e ensaios clínicos)
* Melhora objetiva, remissão, ou ambos, das manifestações clínicas (em vez de medidas substitutas de risco ou redução de peso per se)
* Plausivelmente, diferentes manifestações clínicas da obesidade clínica (ex: cardiovascular, metabólica ou musculoesquelética) podem exigir diferentes intensidades de tratamento, responder a diferentes graus de redução de peso, ou ambos
Intervenções para obesidade clínica (princípios)
* A escolha da intervenção para obesidade clínica (ou seja, estilo de vida, farmacológica, psicológica ou cirúrgica) deve ser baseada em:
* Avaliação individual de risco-benefício
* Evidência clínica disponível de que a intervenção tem chances razoáveis de melhorar as manifestações clínicas e a qualidade de vida ou reduzir o risco de progressão da doença e mortalidade
Os métodos para avaliação da obesidade clínica representam atividades típicas da prática clínica, que devem ser viáveis em ambientes de atenção primária, mas podem exigir consulta especializada quando apropriado. Como a obesidade pode causar doenças, a avaliação da obesidade — e qualquer orientação médica para seu manejo — deve sempre ser fornecida por profissionais de saúde qualificados.
Os clínicos devem estar cientes do risco de erro de diagnóstico da obesidade clínica. As condições indicadas aqui como critérios diagnósticos representam alterações da função orgânica que não são exclusivas da obesidade clínica e podem ser causadas por outras doenças e condições. Deve-se enfatizar que os critérios para o diagnóstico de obesidade clínica só são atendidos quando é possível excluir outras causas plausivelmente. Este problema precisa ser abordado pelo processo de diagnóstico diferencial, que se aplica não apenas à obesidade clínica, mas a todas as outras doenças.
* Objetivos do tratamento da obesidade clínica
As recomendações sobre indicações específicas para tratamentos da obesidade clínica, ou da obesidade em geral, estão além do escopo desta Comissão.
No entanto, a definição de obesidade clínica tem implicações práticas para o tratamento e foi expressamente elaborada para facilitar a tomada de decisões clínicas e políticas. A distinção entre obesidade clínica e pré-clínica é baseada pragmaticamente na presença ou ausência de evidências contínuas de doença.
Portanto, os objetivos do tratamento e as medidas dos resultados do tratamento devem refletir tal distinção. A tomada de decisões clínicas, no entanto, é sempre uma escolha individualizada; assim, o cuidado da obesidade clínica e pré-clínica deve fazer parte de uma avaliação mais ampla dos pacientes individuais, como para qualquer outra doença.
Pessoas com obesidade clínica devem ter acesso oportuno a cuidados abrangentes e tratamentos baseados em evidências. O objetivo da terapia na obesidade clínica deve ser a melhora (ou remissão quando possível) das manifestações clínicas da obesidade e a prevenção da progressão para complicações adicionais ou danos a órgãos terminais.
Com o conhecimento atual, não é possível identificar a quantidade de perda de peso necessária para alcançar tais objetivos, sendo plausível que diferentes manifestações clínicas da obesidade clínica (por exemplo, cardiovasculares, metabólicas e musculoesqueléticas) possam exigir diferentes intensidades de tratamento, responder a diferentes graus de redução de peso ou ambos.
Como em qualquer tratamento de doença, o tratamento bem-sucedido da obesidade clínica deve ser definido com base na melhoria real das manifestações clínicas, e não em medidas substitutas de risco ou redução de peso per se. As escolhas quanto aos tipos de intervenção para a obesidade clínica (ou seja, estilo de vida, farmacológica, psicológica ou cirúrgica) devem ser decisões individualizadas, e devem ser baseadas em avaliações de risco-benefício individuais e em evidências clínicas disponíveis de que qualquer intervenção tem chances razoáveis de melhorar as manifestações clínicas e a qualidade de vida ou reduzir o risco de progressão da doença e mortalidade.
Sistemas de estadiamento para obesidade clínica, refletindo o efeito da doença sobre a qualidade de vida e o prognóstico, são necessários para facilitar as escolhas de tratamento e devem ser o foco de futuros trabalhos.
* Manejo da obesidade pré-clínica
Pessoas com obesidade pré-clínica devem receber orientações de saúde baseadas em evidências e ter acesso equitativo a cuidados de saúde quando necessário para reduzir o risco de desenvolvimento de obesidade clínica e outras doenças e condições relacionadas à obesidade (figura 9).
O aconselhamento em saúde, o nível de cuidado e o tipo de intervenção para obesidade pré-clínica (ou seja, estilo de vida, farmacológica, psicológica ou cirúrgica) devem ser baseados em uma avaliação individual de risco-benefício, considerando a gravidade do excesso ou anormalidade da adiposidade e a presença ou ausência de outros fatores de risco e doenças ou distúrbios relacionados à obesidade que provavelmente se beneficiariam de um tratamento específico.
A obesidade pré-clínica identifica pessoas com um nível variável de risco à saúde, mas com saúde substancialmente preservada no momento. Portanto, a abordagem para o manejo da obesidade pré-clínica deve visar a redução do risco (ou seja, intenção profilática).
Como o nível individual de risco varia substancialmente com vários fatores (por exemplo, etnia, histórico familiar ou distribuição de gordura), a intervenção profilática de escolha deve ser decidida com base no perfil de risco-benefício do indivíduo. Por exemplo: quando o risco de um indivíduo for considerado suficientemente baixo, pessoas com obesidade pré-clínica não necessitam de tratamento com medicamentos ou cirurgia; o aconselhamento apropriado deve ser fornecido para oferecer tranquilidade e orientação sobre estilo de vida saudável, e os indicadores de saúde devem ser monitorados ao longo do tempo.
Para algumas pessoas com obesidade pré-clínica e risco global de saúde mais elevado, outras intervenções (farmacológicas ou cirúrgicas) podem ser justificadas, proporcionalmente ao nível de risco e à presença de outras condições que poderiam se beneficiar da redução de peso ou adiposidade. Nesse caso, o cuidado da obesidade pré-clínica pode exigir o uso profilático de medicamentos (como na dislipidemia e hipertensão), ou, às vezes, até cirurgia, quando for necessária uma redução rápida de risco para agilizar ou facilitar outros tratamentos (por exemplo, transplante, cirurgia ortopédica ou tratamentos para câncer).
Embora essas decisões clínicas devam ser baseadas nas características dos indivíduos, a obesidade pré-clínica geralmente exigirá menor urgência e intensidade de cuidados em comparação com a obesidade clínica. De forma consistente, os resultados do tratamento para obesidade pré-clínica devem ser baseados em medidas de redução de risco, enquanto a melhoria objetiva das manifestações clínicas deve ser considerada um resultado adequado do tratamento na obesidade clínica. Essa distinção tem implicações de importância crucial tanto para a prática clínica quanto para os ensaios clínicos.
Sistemas específicos de pontuação ou classificação para obesidade pré-clínica também devem ser desenvolvidos para avaliar objetivamente o risco e auxiliar na tomada de decisões clínicas ou na escolha do tratamento quando for necessária intervenção ativa para reduzir o risco.
Painel 8
Recomendações para políticas de saúde e educação médica
A implementação das recomendações desta Comissão requer ações coordenadas por profissionais de saúde, organizações médicas, instituições acadêmicas, seguradoras de saúde e agências reguladoras.
Recomendações para formuladores de políticas e reguladores
* Indivíduos com obesidade clínica devem ter acesso oportuno e equitativo a cuidados abrangentes, incluindo tratamentos baseados em evidências disponíveis, conforme apropriado para pessoas com uma doença crônica e potencialmente ameaçadora à vida.
* Indivíduos com obesidade pré-clínica devem ter acesso a aconselhamento, triagem e monitoramento da saúde ao longo do tempo, e cuidados apropriados quando necessário, para reduzir o risco substancialmente elevado de obesidade clínica e outras doenças relacionadas à adiposidade.
* O uso de critérios diagnósticos para obesidade clínica deve se tornar um requisito na avaliação da obesidade na prática clínica.
* A melhoria documentada ou remissão das manifestações de obesidade clínica deve ser considerada como resultados de tratamento apropriados em futuros ensaios clínicos de intervenções antiobesidade existentes e novas.
Recomendações para organizações profissionais e instituições acadêmicas
* Sociedades profissionais internacionais e específicas de cada país e instituições acadêmicas devem se engajar em iniciativas educacionais para profissionais de saúde, a fim de facilitar a implementação dos critérios diagnósticos para obesidade clínica na prática clínica.
* A educação de profissionais de saúde e de saúde pública sobre preconceito em relação ao peso e a ciência moderna da obesidade deve ser uma prioridade importante.
Recomendações para saúde pública
* Estratégias de saúde pública para abordar a obesidade em nível populacional devem ser baseadas em evidências científicas atuais, em vez de suposições que culpam a responsabilidade individual pelo desenvolvimento da obesidade.
* O reconhecimento da obesidade clínica como uma doença crônica deve facilitar um uso mais racional de estratégias de prevenção versus tratamento, e resultar em uma alocação mais apropriada e custo-efetiva de recursos.
Nossa caracterização da obesidade pré-clínica e clínica oferece um quadro pragmático e medicalmente significativo para simplificar a compreensão do escopo e da urgência relativa das intervenções para obesidade, facilitando, assim, a tomada de decisões políticas e a priorização, especialmente ao lidar com recursos limitados de saúde (tabela 1).
A distinção entre obesidade pré-clínica e clínica é, de fato, semelhante ao quadro conceitual de risco versus problema, utilizado para facilitar o gerenciamento de problemas. Semelhante a essas noções de risco e problema, a obesidade pré-clínica e clínica distingue condições nas quais o evento negativo (neste caso, o efeito negativo na saúde do indivíduo) pode ocorrer (como no risco, ou obesidade pré-clínica) ou já ocorreu (como no problema, ou obesidade clínica).
Portanto, as estratégias de manejo para obesidade pré-clínica devem ter como objetivo a redução do risco, enquanto as intervenções para um problema em andamento, como a obesidade clínica, devem ter um propósito corretivo (terapêutico). Assim, o modelo de obesidade pré-clínica e clínica permite distinguir objetiva e pragmaticamente cenários que exigem temporizações e intensidades substancialmente diferentes de intervenção; esses cenários também estão associados a diferentes prazos para avaliar os resultados de saúde e a relação custo-benefício dessas intervenções (por exemplo, prazos mais longos para obesidade pré-clínica e prazos mais curtos para obesidade clínica).
Dadas as implicações da obesidade clínica e pré-clínica, é importante que os formuladores de políticas e as autoridades de saúde garantam acesso adequado e equitativo aos tratamentos baseados em evidências disponíveis para a obesidade clínica, conforme apropriado, para pessoas com uma doença crônica e potencialmente ameaçadora à vida.
Para pessoas com obesidade pré-clínica, os formuladores de políticas devem garantir acesso adequado e equitativo à avaliação diagnóstica do risco à saúde, monitoramento do estado de saúde ao longo do tempo e tratamento apropriado quando necessário devido ao risco elevado à saúde do indivíduo, presença de outros fatores de risco e condições que se beneficiariam das intervenções para perda de peso, ou ambos. As estratégias para o manejo da obesidade pré-clínica devem, portanto, ter a intenção de reduzir o risco de desenvolver obesidade clínica e outras doenças e condições associadas.
* Conclusão
A ideia da obesidade como uma doença está no centro de um dos debates mais controversos e polarizadores da medicina moderna, com implicações amplas e de longo alcance para as pessoas afetadas e para a sociedade como um todo.
Consistente com sua definição original como uma “condição que representa um risco para a saúde”, a obesidade tem sido enquadrada e amplamente estudada como um prenúncio de outras doenças. No entanto, as manifestações da obesidade como uma doença não foram adequadamente caracterizadas. Essa falta de caracterização clínica tem dificultado, até o momento, a aceitação da obesidade como um estado de doença, ao mesmo tempo em que mina abordagens racionais para o cuidado e as políticas.
No entanto, as evidências mostram que o excesso de adiposidade também pode exercer efeitos diretos e negativos no funcionamento dos órgãos, no indivíduo como um todo ou em ambos, produzindo as manifestações clínicas típicas de uma doença.
Esta Comissão define a obesidade clínica como uma condição em que o risco à saúde associado ao excesso de adiposidade já se materializou e pode ser objetivamente documentado por sinais e sintomas específicos que refletem alterações biológicas nos tecidos e órgãos, consistentes com uma doença existente. A obesidade pré-clínica é definida como excesso de adiposidade com função preservada dos órgãos e tecidos, acompanhada por um risco aumentado de progressão para obesidade clínica ou outras doenças não transmissíveis.
Embora uma consideração geral da obesidade como doença possa levantar preocupações legítimas sobre o risco de sobre-diagnóstico, com consequências prejudiciais tanto para os indivíduos quanto para a sociedade, a obesidade clínica reflete objetivamente uma doença em andamento, fornecendo, assim, um alvo racional e medicalmente significativo para diagnóstico e priorização de tratamento.
Esperamos que esse novo enquadramento possa informar políticas de saúde pública, facilitar a identificação de alvos apropriados para estratégias de prevenção versus tratamento, e contribuir para superar equívocos que reforçam o preconceito e o estigma baseados no peso.
“Compartilhar é se importar”
EndoNews: Lifelong Learning
Inciativa premiada no Prêmio Euro - Inovação na Saúde
By Alberto Dias Filho - Digital Opinion Leader
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Embaixador das Comunidades Médicas de Endocrinologia - EndócrinoGram e DocToDoc