quarta-feira, 25 de agosto de 2021

Saúde mental no Brasil: o que esperar no pós-pandemia

 A pandemia de Covid-19 completou um ano em março. Diferentes setores aproveitaram o marco para fazer um balanço de suas respectivas áreas. Na saúde mental, por exemplo, é possível perceber um aumento considerável nos casos de ansiedade, depressão e burnout – especialmente entre profissionais da linha de frente.

Em outubro de 2020, ainda antes da segunda onda, a Organização Mundial da Saúde (OMS) publicou um estudo indicando que a pandemia havia abalado os serviços de saúde mental em 93% dos países – ao mesmo tempo em que a demanda por atendimentos crescia significativamente. Um exemplo disso está na comercialização de antidepressivos e estabilizadores de humor, que só no Brasil aumentou 14% em 2020 – saindo de 56,3 milhões de unidades vendidas em 2019 para 64,1 milhões.

Segundo pesquisa realizada entre junho e julho de 2020 por cientistas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), 80% da população brasileira apresentou sintomas de ansiedade depois do início da pandemia. Os dados evidenciam a enorme lacuna aberta entre a demanda e o acesso a serviços de saúde mental.

A regulamentação do atendimento online amenizou, em parte, essa procura. Nesse sentido, tecnologias como aplicativos de saúde mental ajudaram a sanar, em parte, essas necessidades. Infelizmente, avanços assim tendem a beneficiar justamente o nicho da população menos impactada financeiramente pela crise da Covid-19.

Contexto histórico 

Conforme a OMS, antes mesmo da pandemia, já era possível notar o subfinanciamento generalizado da saúde mental. No Brasil, mesmo com a reforma psiquiátrica que prevê o acesso via Sistema Único de Saúde (SUS), ainda prevalece a falta de universalização ao atendimento psicossocial.

Acompanhe as principais mudanças na área nos últimos anos, no Brasil:

Reforma psiquiátrica – Promulgada em 2001, a Lei da Reforma Psiquiátrica (10.216) é o principal marco da saúde mental no Brasil. As maiores mudanças se referem à assistência até então asilar, que passa para um contexto mais territorial. Nesse sentido, os Centros de Apoio Psicossocial (CAPS) são incluídos no Sistema Único de Saúde e têm como objetivo humanizar o atendimento, agora baseado na socialização do paciente.

Definição de transtornos psiquiátricos – Qualquer comportamento que foge dos padrões da sociedade tende a ser naturalmente marginalizado. Esse processo pode ser a causa ou a consequência de transtornos mentais. Logo, a compreensão do que caracteriza um problema psiquiátrico mudou ao longo do tempo. A homossexualidade, por exemplo, só perdeu o status de doença em 1990. Antes disso, esse e outros comportamentos bastavam para internação compulsória em instituição manicomial.

Atualmente, avaliações clínicas, histórico psicossocial e escalas de avaliação, além de outros critérios, fazem parto do diagnóstico psiquiátrico. Estima-se que 96% das pessoas que vão a óbito por suicídio não receberam tratamento adequado.

Evolução dos tratamentos – Há um consenso científico de que, nas últimas quatro décadas, os medicamentos para o tratamento psiquiátrico evoluíram significativamente. A última classe desses fármacos, os chamados inibidores seletivos e moduladores serotoninérgicos, exerce papel fundamental nos sintomas cognitivos da depressão.

Eletroconvulsoterapia – Conhecido como eletrochoque, o procedimento é polêmico até hoje, por conta da maneira indiscriminada com que era aplicado no passado. Pacientes agressivos recebiam choques sem anestesia, a fim de estimular crises convulsivas e reequilibrar o funcionamento cerebral. Atualmente, no entanto, a eletroconvulsoterapia é aplicada em casos específicos de depressão grave e resistente. Além disso, o procedimento é realizado com equipe de saúde apropriada, com o consentimento do paciente e anestesia geral.

Psicoterapia – Há tempos a psicoterapia deixou de ser uma forma de opressão dos pacientes. Antes, os indivíduos eram estimulados a reproduzir comportamentos tidos como normais, em detrimento da compreensão aprofundada do processo cognitivo por trás das suas ações. Atualmente, as terapias cognitivo comportamentais (TCC), por exemplo, se destacam por essa convergência. Terapias assim auxiliam na autonomia do paciente, para que ele possa identificar pensamentos automáticos e, a partir disso, mudar comportamentos que geram sofrimento.

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Perspectivas da saúde mental no Brasil

Como é necessário evoluir em diversos aspectos, as mudanças que envolvem a saúde mental no Brasil poderiam dialogar melhor com a vasta produção científica no país. A conclusão é do artigo Política de saúde mental no Brasil: o que está em jogo nas mudanças em curso, publicado no Caderno de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz.

A análise é de 2015, um ano antes da revisão da lei antimanicomial. No entanto, o estudo já apontava a necessidade um maior consenso sobre as políticas públicas. Ainda que por um lado a nova lei preveja o fechamento de hospitais psiquiátricos, por outro, amplia o número leitos dessa natureza em hospitais. A medida divide especialistas.

Outro ponto que ainda não é consenso e deve pautar a saúde mental nos próximos anos diz respeito aos usuários de álcool e drogas. Em meio à pandemia, houve um aumento estimado de 30% no consumo de álcool e outras substâncias no Brasil. O comportamento está associado a tristeza e ansiedade, agravadas pela crise sanitária. Indivíduos com dependência química são tratados a partir do sistema manicomial, onde ficam internados para reabilitação a partir da abstinência. A política anterior visava à redução de danos.

Para saber mais, confira a entrevista exclusiva com Antônio Geraldo da Silva, presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP):

Quais são as suas perspectivas para o futuro da saúde mental no Brasil?

Precisamos de uma atenção ainda maior à assistência pública em saúde mental. As consequências trazidas pela pandemia encontraram uma situação longe da ideal. Ou seja, além de lidar com as dificuldades e os desafios já existentes acerca da saúde mental, temos o agravante trazido pela Covid-19. É necessário continuar os esforços em busca de um sistema ambulatorial em saúde mental semelhante ao que já é praticado para outras especialidades, focado não somente no tratamento de patologias, mas também na promoção da saúde e prevenção de doenças.

Um tratamento tão antigo quanto polêmico é a eletroconvulsoterapia. Qual é, hoje, a indicação terapêutica dessa técnica no Brasil?

A ECT é uma prática regulamentada pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) nas Resoluções nº 1.640/2002 e nº 2.057/2013. É utilizada em pacientes que apresentam quadros de depressão resistente, esquizofrenia, depressão bipolar, grande risco de suicídio e que precisam de uma resposta rápida ao tratamento.  Ao longo dos seus 83 anos de utilização, a ECT trouxe inúmeros benefícios aos pacientes psiquiátricos. Além de salvar vidas, a técnica comprovadamente proporciona qualidade de vida aos padecentes.

Não é praxe noticiar suicídio, a fim de prevenir o chamado efeito Werther. O que falta para que o debate sobre um assunto tão relevante evolua sem tantos tabus, mas com a devida responsabilidade?

Prevenção ao suicídio também se faz com informação correta à população. É preciso orientar a todos que o suicídio pode ser evitado com o tratamento da doença mental que leva a ele, noticiar de forma correta, destacando casos de pessoas que se restabeleceram completamente e não apresentam mais a ideação suicida. Apenas falar sobre o assunto não é a solução; precisamos agir de modo a tornar a prevenção ao suicídio uma realidade. É aqui entra o papel da imprensa: trazendo visibilidade às campanhas, falando corretamente sobre o suicídio, seguindo as orientações da OMS. Os veículos de comunicação são os nossos aliados na divulgação de informações corretas à população e, consequentemente, na ação efetiva para prevenir o suicídio e salvar vidas.

O que mais é preciso avançar para otimizar a atenção à saúde mental da população, de maneira geral?

Nós produzimos ciência de primeiro mundo e conseguimos aplicá-la no âmbito privado da saúde. Infelizmente, esta não é uma realidade para a saúde pública, onde ainda há muito o que melhorar. A maioria da nossa população depende do Sistema Único de Saúde (SUS) para um atendimento mínimo em saúde mental. Por exemplo, somente em 2020 conseguimos acrescentar importantes medicamentos para tratamento psiquiátrico na Relação Nacional de Medicamentos (Rename), devido à necessidade de atendimento durante a pandemia. A situação da saúde mental no Brasil precisa de melhorias que passem pela garantia do acesso a atendimento e tratamento de qualidade na rede pública. Precisamos efetivamente de ambulatórios em saúde mental e leitos psiquiátricos para emergências em hospitais gerais, entre outros dispositivos que garantam o direito à saúde desta parcela da população.

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