domingo, 26 de junho de 2011

Agrotóxicos em plantações de fumo prejudicam produtores e seus vizinhos

O clima na sala da casa é pesado. Não existe momento de descontração nesta tarde fria em Rio Azul, a 180 quilômetros de Curitiba. Do lado de fora, as crianças se divertem com o opaco colorido das casas de alvenaria típicas do Paraná. Dentro, os adultos têm uma tensa conversa. Lídia Maria Bandacheski do Prado, de 35 anos, tem a tristeza estampada no rosto. Nas mãos, a fraqueza provocada pelo uso de agrotóxicos. À frente das pernas, um andador mostra que os problemas notados há uma década e agravados há quatro anos estão longe de encontrar solução. “Teve época que não conseguia sair da cama. Tem dia que fica pior, que não consigo fazer nada, me paralisa as pernas, me paralisa os braços.”

Uma visita ao hospital em 2001 deu início ao calvário de Lídia, dona de uma pequena propriedade. Passaram-se muitos anos até que uma equipe da Universidade Federal do Paraná esclarecesse que ela sofre de intoxicação crônica por agrotóxicos. “Fique quase dois anos sem dormir direito. Com dor nos braços, nas pernas. Era um fantasma dentro de casa”, lamenta. Nascida e criada na roça, Lídia viu a morte prematura do pai transformá-la em uma das chefes da família. Aos 9 anos, passou a ajudar a mãe diretamente no plantio de fumo, uma prática que até hoje não foi retirada do mapa da produção de tabaco no Brasil. Se hoje persistem problemas no manejo do agrotóxico, naquela época não se tinha a menor ideia dos efeitos dessa substância sobre a saúde humana.

Uma das práticas era cavar um buraco no chão e ali preparar, com as mãos desprotegidas, o “tempero”, a dissolução dos defensivos agrícolas em água. “Naquela época a gente vivia dentro do paiol. A mãe cozinhava dentro do barracão, a gente dormia em cima das pilhas de fumo”, conta a agricultora.

Pesquisas

O caso de Lídia chamou a atenção dos integrantes do Núcleo de Estudos em Saúde Coletiva da UFPR, que em 2009 passou a analisar a intoxicação por agrotóxicos em Rio Azul, cidade em que 45% das riquezas passam pelo tabaco. É um dos muitos municípios paranaenses responsáveis pela produção de 150 mil toneladas de fumo ao ano, oscilando entre 15% e 20% do tabaco nacional, setor comandado pelo Rio Grande do Sul. São pequenas propriedades, na maioria entre zero e dez hectares, empregando em sua quase totalidade mão de obra familiar.

Ao mesmo tempo, o Paraná figura entre os quatro estados que mais consomem defensivos agrícolas no Brasil, dado que é atribuído também à soja e ao milho. “Apesar de uma redução nos últimos anos, ainda se utiliza muito agrotóxico na cadeia do fumo. É um trabalho extremamente penoso, com equipamento costal, que dá problemas na coluna e reumatismo”, adverte Amadeu Bonatto, coordenador técnico do Departamento de Estudos Socioeconômicos Rurais (Deser).

O levantamento de dados por parte do Núcleo de Saúde Coletiva está na fase final. Ao levantar os casos registrados de intoxicação por agrotóxicos nos últimos dez anos em Rio Azul, os pesquisadores apenas ratificaram a impressão de que a cidade segue a média nacional de subnotificação deste tipo de ocorrência. “Os produtores ficam tontos, sentem ânsia de vômito, mas a relação entre agrotóxico e sintomas nem sempre é feita”, lembra Paulo de Oliveira Perna, coordenador do núcleo, que adverte que também entre os agentes de saúde a questão dos agrotóxicos é subestimada.

Um dos obstáculos para o convencimento é também cultural. A maioria dos agricultores, criado nesse ambiente, sempre resistiu a acreditar que aquilo que sempre foi feito possa estar errado – cada organismo reage de uma maneira à exposição ao agrotóxico e a intoxicação crônica pode levar anos para se consumar. Outra questão é a baixíssima escolaridade: segundo dados da Associação dos Fumicultores do Brasil (Afubra), 89,9% dos trabalhadores do setor não completaram o ensino fundamental, o que dificulta a leitura das bulas e a aplicação das dosagens corretas.

Alguns vizinhos de Lídia custam a acreditar que as falhas de memória e as perdas parciais de movimento de pernas e da visão sejam resultado do uso dos venenos. Para desafiar as constatações científicas, um vizinho chegou a mergulhar em um tambor “temperado”. Não satisfeito, continua levando os filhos ao trabalho na roça. Uma das filhas de Lídia, submetida à mesma rotina quando a família não sabia dos efeitos nocivos do agrotóxico, teve extraída parte do aparelho urinário.

Empresas

O Ministério Público do Trabalho avalia que as empresas devem ser culpadas pelos danos provocados por defensivos agrícolas. Sem ingressar nos pormenores dos contratos estabelecidos entre fumageiras e fumicultores, tema que será abordado na próxima reportagem da série, os agricultores utilizam os produtos e as quantidades entregues pelas empresas. “Os engenheiros agrônomos são contratados pela própria empresa, o que configura conflito de interesses. As empresas exigem não apenas a quantidade, mas a marca do agrotóxico”, assinala a procuradora Margaret Ramos de Carvalho. Na safra 2010/11, o uso do Gamit 500 rendeu dores de cabeça aos produtores de orgânicos de São João do Triunfo (leia quadro abaixo).

“Pude perceber que tinha problema de saúde quando deixei de produzir fumo químico. Sentia dor de cabeça, tontura, mas não sabia que era o agrotóxico”, recorda Anderson Sviech, um produtor de Palmeira, a 80 quilômetros de Curitiba. Um embaço nos olhos, muitas vezes, é interpretado como conjuntivite. Perda de apetite e irritabilidade são outros sintomas subestimados. O uso dos equipamentos de proteção individual, os chamados EPIs, é uma questão à parte. “A indústria quer falar que foi o produtor que não usou, mas mesmo usando não protege. Quando se está aspergindo, o veneno passa, não tem como”, reclama Paulo Perna, da Universidade Federal do Paraná.

Outra argumentação das fumageiras é de que os trabalhadores não cumprem o chamado “prazo de carência” após a aplicação do agrotóxico, ou seja, não ficam distantes da plantação tempo suficiente para que o veneno se dissipe. O problema, como se sabe, é que as propriedades são muito pequenas e as plantações ficam logo ao lado das residências.

Folha verde

A parede do paiol de Evaldo Gross, de 47 anos, mostra que ele sabe os efeitos dos agrotóxicos: alguns cartazes fornecidos pela fumageira indicam quais EPIs devem ser utilizados em cada fase da lavoura. No entanto, a colheita ocorre em pleno verão, e Evaldo se queixa que a roupa de proteção acaba queimando a pele. O resultado do contato direto com a planta é a chamada “doença da folha verde” do tabaco. Trata-se da manifestação de uma série de sintomas causados pelo contato com a folha molhada, que libera nicotina. “Quando chega a tarde, começa a dar moleza nas pernas, dá ânsia. Um mal-estar tremendo. E não tem remédio, tem de esperar passar. Te trava o sono, atravessa a noite sem dormir”, afirma Evaldo. Ao fim de um dia de trabalho na época de colheita, um produtor fica exposto a 54 miligramas de nicotina, o equivalente a 36 cigarros.

Apesar dos problemas, os fumicultores têm poucas alternativas para mudar a produção. É comum ouvir que a renda vem em primeiro lugar, a saúde em segundo, e o resto depois. Lídia, mesmo com as limitações provocadas pelos agrotóxicos, sentia-se obrigada a seguir cultivando fumo para ter um sustento. Só parou porque, após a constatação da intoxicação crônica, nenhuma fumageira quis manter vínculos com a agricultora. Sem alternativas economicamente viáveis para uma propriedade de oito hectares, ela e a família se preparam para engrossar uma área urbana.

Em São João, o triunfo é do agrotóxico

São João do Triunfo é uma pequena e montanhosa cidade, vizinha de Palmeira e uma das grandesprodutoras de fumo. Há bairros inteiros que vivem em torno da fumicultura. Azar dos vizinhos. Em março deste ano, um grupo de agricultores autointitulado Coletivo Triunfo divulgou uma carta na qual se queixa que as propriedades responsáveis pela produção de alimentos sofreram contaminação por agrotóxicos.

Eles contam que o problema se agravou este ano e acusam as empresas de ter receitado aos fumicultores o Gamit 500, herbicida proibido pela Secretaria de Agricultura do Paraná. A recomendação da bula das variações de Gamit permitidas no estado é de que se mantenha uma distância de 800 metros em relação a lavouras de milho e girassol, hortas e pomares.

Como isso não ocorreu, os agricultores denunciam a morte de pássaros e plantas, além de problemas de saúde em algumas famílias. Silvestre de Oliveira Santos, um senhor corpulento de Fernandes Pinheiro, cidade colada a São João, trabalha com a possibilidade de ruir os esforços empreendidos na certificação de seus produtos orgânicos, uma medida que abriria novos mercados e renderia melhor remuneração. “A gente estava há dez anos trabalhando nisso. Trabalhando em organização e avaliação”, lamenta.

Ele conta que na época em que o vizinho aplicou Gamit, as plantas amarelaram e as frutas caíram. Agora, acredita que boa parte da plantação vai acabar secando. “Se vier aplicar Gamit de novo, temos que tomar providência. Se não aplicar, pode plantar o que quiser aqui do lado, não tem problema.”

Fonte: http://www.ecoagencia.com.br/?open=noticias&id=VZlSXRVVONlYHZEUTxmWhN2aKVVVB1TP

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